O Cinema visto pela Teologia (33): “A memória de um assassino”

Uma leitura do filme “A Memória de um Assassino*

Por Alexandre Freire Duarte

Enquanto se espera para ver o que será, e o que fará Liam Neeson em, “Marlow” (não merece Raymond Chandler essa espera?), surgiu “A Memória de um Assassino”. Duvidei ir vê-lo; não por causa de “assassino” (não o somos todos, em graus distintos, pelo menos de Jesus?), mas por temer deparar-me com o continuar de um triste e repetitivo “pôr do Sol” de uma carreira (a de Neeson).

Dito isto, foi delicioso ver este filme de aventura conspirativa. A direção é apurada e elegante, com as cenas de ação a imitarem as desordens e a perda das aptidões mentais da figura principal (que sofre de Alzheimer); o desempenho, cheio de nuances, do ator que “dá corpo” a estoutra é primoroso; as demais personagens oscilam entre as que criam empatia e compaixão, às que suscitam repulsa, passando pelas que, para que a obra funcione, nada geram; enfim, a trama oscila, num liame inusual, entre cenas dolorosamente tensas e impactantes e outras apenas intrigantes.

É uma pena que, com filões de reflexão tão aliciantes, a intenção geral do diretor, em se manter ligado ao fluxo axial da narrativa, o tenha impedido de explorar tais veios. Em especial: o da perda das capacidades cognitivas e suas consequências, inclusive a nível do (re-)despertar da consciência moral; o colocar-nos a ter compaixão por um assassino vulnerável (que até se sacrifica para que a busca da justiça possa continuar), apenas para, depois, nos fazer lembrar do que ele fora; por fim, as inquietações face a uma bússola moral que parece estar quebrada.

Teologicamente falando, a obra pode ser vista como uma curiosa ponderação sobre o papel das nossas memórias na nossa vida: somos mais do que elas? Reduzimo-nos a elas? Serão elas mais do que nós? Em que sentido as mesmas (associadas e/ou não às redes de relações e decisões que vamos estabelecendo ao longo da nossa vida, tantas vezes a funcionando como “portos de abrigo” num mundo violento, corrupto, despótico, arrogante, astucioso, etc.) nos humanizam ou desumanizam, a caminho da nossa, já presentemente em Deus, crescente visão mais clara da realidade? Não há como escapar, também desde esta obra, a estas questões.

Mas não só: este filme obriga-nos a pensar acerca de como devemos encarar as pessoas: há um limite para a ponderação (a partir das suas ações) de quem elas são? Podemos esperar (tal como Deus espera incansavelmente) que ocorram mudanças para melhor nas suas vidas? E quando estas alterações ocorrem, podemos (devemos?) ver tais pessoas de uma outra forma, ou será que deveríamos tê-las visto sempre desse modo? Não há, enquanto cristãos, como respondermos a isto senão desde o único olhar correto (o de Jesus ressuscitado). Mas queremo-lo fazer?

Há, como acontece com esta obra, filmes violentos que, espelhando o nosso “ego” individual e coletivo, nos colocam diretamente no Gólgota, quer dos leques de opções das nossas vidas, quer do modo como discernimos quem são os demais. Ainda bem. Tais filmes despertam-nos para as nossas fraquezas, as quais só com o poder crístico do Espírito Santo podem começar a ser superadas.

(* EUA, 2022; dirigido por Martin Campbell, com Liam Neeson, Guy Pearce, Taj Atwal, Harold Torres e Monica Bellucci)