
Por M. Correia Fernandes
A narrativa do Génesis, em que Abraão pede a Javé que não seja destruída a cidade se lá forem encontrados 10 justos, possui uma atualidade flagrante. Não se trata de história mas de visão simbólica: a cidade é o símbolo da nossa sociedade e as causas da ameaça da destruição são as mesmas de hoje: a violência, a imoralidade (entendendo por imoralidade a ausência dos valores éticos e do equilíbrio humano), o esquecimento dos direitos das pessoas, a ambição de domínio e poder (cujos resultados levaram o Papa Francisco a pedir perdão, no Canadá, pelas “políticas de assimilação e desvinculação, que transmitiam um sentimento de inferioridade, despojando comunidades e pessoas das suas identidades culturais e espirituais, cortando as suas raízes e alimentando atitudes preconceituosas e discriminatórias”). O que houvera o Papa de dizer também, em visita aos países africanos, sobre a escravatura, ou aos países da América do Sul sobre a exploração e destruição dos indígenas do Brasil e do México, contra os quais se levantaram já vozes como Bartolomé de las Casas ou António Vieira?
O que está então em causa para a destruição da cidade são os males humanos, que destroem a civilização, a cultura, o conhecimento, a sabedoria.
Há o contraponto de Abraão: haveis de destruir os justos por causa dos pecadores? Haveis de destruir a civilização, o conhecimento, a edificação da sociedade, a convivência em paz, por causa da violência e do ódio, que nasce também da condição humana? Encontramos aqui eco da palavra de Cristo que lembra que o Senhor faz nascer o sol sobre os bons e os maus e chover sobre os justos e injustos. A grande destruição do universo está a ser realizada pela ação humana, seja no clima, seja na violência e na guerra, seja no desequilíbrio do relacionamento social. Talvez este seja o pior, porque é a causa dos outros. É pela ação dos justos que é poupada ou acrescentada a civilização e a dignidade humana.
Estamos em tempo de caminho sinodal, que constitui sobretudo uma reflexão e esforço descoberta de formas de ação pelas quais os justos continuam a tentar evitar a destruição da cidade e a edificar caminhos de diálogo e de aproximação.
Após escutar aquele concerto, tal como qualquer outro, o Bispo do Porto evidenciou o sentido simbólico desse momento: a partir da harmonia das vozes do coro, em que todos colaboram, cada um na sua função, não se sobrepondo nem marginalizando os demais, mas estando ao lado deles, para a construção de num conjunto harmonioso, associando as diversas vozes na criação de uma mensagem de beleza e sentido espiritual. O mesmo se pode afirmar dos criadores da beleza artística numa exposição coletiva. Um concerto, como um recital de órgão e vozes, constitui , na sua criatividade e beleza, uma edificação simbólica da cidade, e de uma Igreja que se deve tornar o universo dos justos que impedem a destruição da cidade.
A voz de Francisco é como a de Abraão: há que lembrar que nesta sociedade humana são os caminhos da justiça que salvam a convivência humana. A sua ação supera a das profecias da desgraça, mas torna-o como uma sentinela da esperança na cidade de hoje.
Como já recordamos nestas páginas, a visão edificada no Vaticano II propondo uma Igreja inserida nos dramas humanos, nas alegrias e esperanças como nos medos e nos dramas, mantém o seu apelo de humanidade para a qual impede a destruição.
O ensinamento evangélico da missão apostólica assenta em duas dimensões: curar (expulsar os demónios) e edificar (dizei que está próximo de vós o Reino de Deus). Por isso importa escutar o apelo: Em nome da “fraternidade humana”, que abraça todos os homens, une-os e torna-os iguais. Em nome desta fraternidade, dilacerada pelas políticas de integralismo e divisão e pelos sistemas de lucro desmesurado e pelas tendências ideológicas odiosas, que manipulam as ações e os destinos dos homens. Em nome da liberdade, que Deus deu a todos os seres humanos, criando-os livres e enobrecendo-os com ela.
Em nome da justiça e misericórdia, fundamentos da prosperidade e pilares da fé.
Em nome de todas as pessoas de boa vontade, presentes em todos os cantos da terra.
Em nome de Deus e de tudo isto, declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério” (Fratelli Tutti, 285). São estes o 10 justos que impedirão a destruição da cidade.