O “assombro” do Mistério – Desiderio desideravi (3)

Por Secretariado Diocesano da Liturgia

Nos últimos anos da sua vida, Romano Guardini interrogava-se acerca da possibilidade de o homem contemporâneo ser ainda capaz de celebrar. Que lhe faltava? A capacidade de perceber, desde a fé, o caráter epifânico da ação litúrgica e, consequentemente, de se «assombrar», surpreender, espantar, maravilhar perante a presença de Cristo a realizar hoje, com o seu povo e em favor do seu povo, a obra da redenção. Para tal teria de recuperar-se a capacidade simbólica – de «perceber/sentir os símbolos e de agir simbolicamente – que a modernidade, racionalista e individualista, tinha perdido. Tinha de reaprender-se a participar com o olhar contemplativo – e com todos os sentidos – no acontecimento litúrgico.

O Papa Francisco, que na década de 1980 se familiarizou com os escritos de Guardini quando trabalhava numa tese de doutoramento, situa-se precisamente nessa perspetiva: «é-nos pedido – sublinha – que em cada dia redescubramos a beleza da verdade da celebração cristã. Refiro-me, mais uma vez, ao seu sentido teológico, tal como o n. 7 da Sacrosanctum Concilium maravilhosamente o descreveu: a liturgia é o sacerdócio de Cristo a nós revelado e doado na sua Páscoa, hoje tornado presente e atuante mediante sinais sensíveis (água, azeite, pão, vinho, gestos, palavras) para que o Espírito, submergindo-nos no mistério pascal, transforme toda a nossa vida conformando-nos cada vez mais a Cristo» (DD 21).

Não se trata de uma procura esteticista ou de uma observância meramente rubrical. Não se julgue, porém, que Francisco desvaloriza o rito litúrgico ou aprove a negligência neste campo (cf. DD 22). «Todos os aspetos do celebrar devem ser cuidados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música, …) e todas as rubricas devem ser observadas» (DD 23). Em nome de uma pretensa simplicidade, que não passa de banalidade e superficialidade ignorante (DD 22), não podemos «subtrair» (eufemismo de «roubar») aquilo que é devido à assembleia: «o mistério pascal celebrado na modalidade ritual que a Igreja estabelece» (DD 23).

Para Guardini, um pároco do século passado que dissesse: «precisamos de organizar melhor a procissão; temos de melhorar a qualidade da oração e do canto» estaria a passar ao lado da verdadeira ação litúrgica. A questão a pôr deveria ser antes esta: «Como é que o ato de caminhar se pode tornar um ato religioso, um seguimento do Senhor que avança pelos caminhos da nossa terra, de tal modo que possa acontecer uma “epifania”» (cf. Guardini, «Carta aberta»). Francisco partilha esta posição. Para ele, não basta assegurar o patamar da correção rubrical e da desejável qualidade estética. O importante e decisivo é o «assombro», «o maravilhamento pelo mistério pascal que se torna presente no concreto dos sinais sacramentais» (DD 24).

Todos os esforços em prol da qualidade da celebração, acompanhados da valorização da interioridade da mesma não são suficientes nem valem por si. Tem de acontecer a maravilha espantosa do encontro com Deus que não é fruto da procura de cada um mas é pura graça: um acontecimento dado. «Podemos encontrar Deus pelo facto novo da Encarnação que na última Ceia chega ao extremo de desejar ser comido por nós» (DD 24). E este dom é tão surpreendente, tão para além de quanto se possa deduzir, que só por desgraça pode deixar de nos fascinar, maravilhar, suscitando verdadeiro assombro.

Este assombro perante o mistério pascal é o verdadeiro «sentido do mistério» que não se pode perder mas antes deve alimentar toda a nossa vivência e participação litúrgica. Não têm razão os que acusam a reforma litúrgica de «perda do sentido do mistério» porque este não consiste no caráter obscuro ou enigmático dos ritos mas é antes a manifestação, a epifania no rito do «plano salvífico de Deus que nos foi revelado na Páscoa de Jesus (cf. Ef 1, 3-14) cuja eficácia nos continua a alcançar na celebração dos “mistérios”, isto é, dos sacramentos» (DD 25).

Eis o que importa preservar: este assombro perante o «mistério» (em sentido paulino) que naturalmente conduz à adoração, ao louvor, à ação de graças, à súplica, à vida. «O assombro é parte essencial do ato litúrgico porque é uma atitude de quem sabe que se encontra perante a peculiaridade dos gestos simbólicos; é o enlevo de quem experimenta a força do símbolo, que não consiste em remeter para um conceito abstrato mas em conter e exprimir na sua concreção aquilo que significa» (DD 26).