Última viagem

Foto: Agência Ecclesia

Por padre Manuel Mendes

Vice-Postulador da Causa de Beatificação do Venerável Padre Américo

Américo Monteiro de Aguiar percorreu muitos milhares de quilómetros: calcorreou a pé inúmeros carreiros, caminhos, estradas, becos, ruas e avenidas; e realizou muitas viagens – de barco, automóvel e avião – desde a sua infância, no seu percurso de vida – escolar, profissional, vocacional e sacerdotal, nomeadamente ao serviço dos Pobres, principalmente em Portugal e Moçambique. Os relatos pormenorizados de parte das viagens do Padre Américo foram publicados no jornal O Gaiato; e depois foram reunidas crónicas nos seguintes livros: De como eu fui… [1987] e Viagens [1954;1973]. Nesta obra foram recolhidos textos referentes a viagens significativas: Brasil [Junho-Agosto 1949, com José Eduardo], África [Angola e Moçambique, Julho-Out.1952, com Júlio Mendes], Madeira [Jan. 1956, com Joaquim Bonifácio] e Açores [Out. 1951, com Avelino; 1954 e 1956].

Como Procurador dos Pobres, foi dando a sua vida na Igreja, servindo os Pobres até ao sofrimento final – a morte, que acabou por acontecer no Porto – cidade de que tanto gostava! Entre outros títulos, também foi chamado de Poeta da Caridade, pelo que é significativa a sua afirmação: Poetas fazem livros. Mártires fazem casas. Antes quero ser mártir [O Gaiato, n. 262, 13 Março 1954].

Sobre os últimos dias da sua vida neste mundo, Júlio Mendes escreveu um testemunho – Por amor à verdade, dando conta das viagens próximas da última viagem: Em 12 de Julho, 5.ª feira, foi a bênção da Capela de Beire. Dia de grande satisfação para Pai Américo. E o seu último acto público, como que o sublinhar do seu cuidado maior: «A vida religiosa nas nossas comunidades seja o centro. As grandes aflições dos Padres da Rua tenham aqui a sua origem; vale mais a alma do que o corpo». Na tarde desse dia partiu em direcção ao Minho, aonde o levavam assuntos da Obra. Arrumados estes, em 6.ª feira, 13, outros o obrigaram a descer a Coimbra. Contava pernoitar em Marinha Grande, onde realizaria uma palestra sobre o Património dos Pobres; porém, a notícia de uma recepção festiva, desviou-o de lá. Mas sempre continuou para o Sul a fim de tratar em S. Martinho do Porto do Património dos Pobres naquela terra. Foi o seu último sopro. De regresso trouxe de Alcobaça as duas senhoras para ajudar nesta Casa de Paço de Sousa. Foi no sábado, 14, o fim da viagem. A tarde desse dia esteve ainda tomada por voltas no Porto. No regresso a Paço de Sousa, em S. Martinho do Campo – de Valongo foi o desastre. […] [O Gaiato, n. 325, 18 Agosto 1956]. Sobre alguns intervenientes desses dias derradeiros, indicam-se, v.g.: Abel Braga, gaiato e motorista do veículo; a 13 de Julho, em Subportela – Viana do Castelo, encontrou-se com o Bispo Coadjutor de Angra, D. Manuel Afonso de Carvalho [19-II-1912 †13-XII-1978], para tratar da situação da Casa do Gaiato nos Açores, e ainda (no mesmo dia) visitou o Bispo de Coimbra, D. Ernesto Sena de Oliveira [30-IV-1892 †13-X-1972]; e, em 14 de Julho, na casa Espelho da Moda, na rua dos Clérigos, da cidade do Porto, esteve com o seu amigo Manuel Cunha.

De facto, memento mori e veio a acontecer um desastre de automóvel, como receava e escreveu cerca de um mês antes: Se os senhores ouvirem dizer que eu um dia fiquei òs pedaços, não precisam de ir perguntar a ninguém a causa do desastre; «aqui é Portugal» […] [O Gaiato, n. 321, 16 Jun. 1956]. Infelizmente, em 14 de Julho de 1956, foi vítima de um acidente de automóvel [no veículo DD-22-19, Morris], próximo do lugar da Chã, em S. Martinho do Campo – Valongo, numa viagem de regresso à Casa do Gaiato de Paço de Sousa, conforme foi descrito assim: O automóvel, ao passar em S. Martinho do Campo, Valongo, embateu violenta, estrondosamente, contra um muro. Ao tentar ultrapassar um outro veículo e porque surgisse, inesperadamente, um carro de bois, o Abel tentou, no desejo de evitar um choque, uma manobra rápida. Mas, inesperadamente também, um monte de terra, a meio da estrada, deu aso a que o veículo, perdida a direcção, esbarrasse contra a parede [Diário do Norte, 16 Julho 1956]. [Em 1959, nesse sítio foi edificado um nicho religioso – alminhas, figurando Nossa Senhora do Carmo e o rosto do Padre Américo, em baixo]. Viajando ao lado direito do condutor, depois do embate o Padre Américo ficou com ferimentos graves nos membros inferiores e teve de ser transportado pelos Bombeiros Voluntários de Valongo para o Hospital Geral de Santo António – da Misericórdia do Porto.

Em 15 de Julho, às 10 horas da manhã, perfeitamente lúcido, pediu e recebeu os últimos Sacramentos da Igreja Católica, administrados pelo Padre Vieira Mendes, Capelão do Hospital Geral de Santo António. Porém, ninguém queria acreditar que fosse o seu último pedido, de que é exemplar este testemunho: – Eu acreditei – diz-nos Júlio Mendes, com os olhos dilatados, vermelhos de chorar e de sofrer – que estivéssemos a caminho da cura!… E resignado acrescenta: – Mas enganei-me! Deus quis levá-lo. Eram seis horas e cinco minutos! Junto dos restos mortais do apóstolo estavam um Padre da Rua, o Júlio Mendes e outros gaiatos. A notícia da morte espalhou-se, depois, como um furacão, por toda a cidade, por todo o Norte, por todo o País. A Emissora Nacional, por intermédio do Emissor Regional do Porto, transmitiu-a no seu serviço das 8 horas e 20 minutos. Milhares e milhares de pessoas começaram a chegar ao Hospital de Santo António. Todos queriam vê-lo. Vê-lo e rezar [Diário do Norte, 16 Julho 1956].

Eis, então, que no dia 16 de Julho de 1956, pelas 6 horas e cinco minutos, Deus quis assim chamar Américo Monteiro de Aguiar à Sua presença. Com coragem e serenamente, Pai Américo entregou a sua vida luminosa a Deus, que tanto amou, pois passou fazendo o bem, a exemplo de Jesus – pertransiit benefaciendo, como resumiu S. Pedro a vida de Cristo [Act 10, 38]. Era memória de Nossa Senhora do Carmo, sendo que diariamente desfiava as contas do Rosário e colocou uma imagem de Nossa Senhora da Conceição na Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa. De forma incontornável, este acontecimento ficou para sempre inscrito nos anais da cidade do Porto, de Portugal e da Igreja Católica, como grande português e grande Padre, cuja memória permanece viva.

O Padre Alexandre dos Santos, O.F.M. [21-XII-1875†11-I-1961], um dos seus companheiros em Vilarinõ de la Ramallosa, deixou um interessante testemunho de amizade desse tempo franciscano, precedido duma referência ao encontro final com a irmã morte: No sábado, 14 de Julho, realizava-se tragicamente o pressentimento do Padre Américo!: Num desastre de automóvel, em S. Martinho do Campo fere-se num braço, quebra ambas as pernas, é internado em estado muito grave no Hospital Geral de Santo António – do Porto, onde, confortado com todos os sacramentos, entrega serenamente a Deus a sua alma – cheia de Graça – e entra na Glória, coroa justa do desempenho cabal da missão a ele confiada e fielmente consumada: amar e servir a Jesus Cristo nos mais pequeninos e desprezados dentre os seus Irmãos: os Gaiatos… – segunda-feira, 16 de Julho, pelas 6 horas duma linda manhã!… [O franciscano Padre Américo, in Alma, ano XLIX, n. 21, Set. 1956, p. 1].

Confirmado o desfecho extremamente doloroso da morte de Pai Américo, foi lavrado o respectivo assento de óbito, que pudemos ler e transcrever, com a triste notícia que abalou Portugal, deixando-o de luto, e correu depressa pelo mundo além. Eis o essencial do registo: Às seis horas do dia dezasseis do mês de Julho do ano de mil novecentos e cinquenta e seis, no Hospital Geral de Santo António, da freguesia de Miragaia desta cidade, faleceu de fractura exposta e cominutiva das pernas um indivíduo do sexo masculino de nome Américo Monteiro de Aguiar, de sessenta e nove anos [68] de idade, de profissão sacerdote […] [Arq.º Centr. Porto, 3.ª Cons.ª – reg.to óbito n. 1076, 1956].

Júlio Mendes – gaiato próximo, amigo e fiel – testemunhou o seguinte: E na segunda-feira cerrou os olhos para o mundo e abriu-os para o Céu. Custou-nos! Aos homens que ficam a morte custa. É a saudade. Mas a morte para o Pai Américo fora sempre o princípio da Vida. E para a Vida Eterna é que trabalhara – pelo desgaste quotidiano, vigílias, desgostos, incompreensões, em suma amor total ao Rapaz da rua e ao Pobre, por amor de Deus [O Gaiato, n. 324, 28 Julho 1956].

O Pai Américo morreu! Em 16 de Julho de 1956, esta infausta notícia encheu de emoção e tristeza multidões de pessoas, cujo choque não se apagou mais da sua memória e do seu coração, sacudindo como um terramoto Portugal e muitas outras terras que sentiram a sua acção e dele ouviram falar pelas suas obras. Tamanha onda de luto e dor abalou profundamente a sociedade portuguesa e especialmente as pessoas humildes. De muitos pontos do Continente e do Ultramar, chegaram à Casa do Gaiato de Paço de Sousa muitos telegramas, com expressivas condolências.

Entre muitos artigos de jornais e revistas, sobre esses dias de dor e saudade, seguem-se alguns recortes de notícias. Especialmente no grande Porto, o choque foi muito violento. Eis, do Porto: Morreu o Padre Américo, o grande e bondoso sacerdote que fez da sua vida um dos mais altos, dos mais belos e dos mais nobres exemplos de apostolado. A notícia, que correu de manhã nesta cidade, brutal, esmagadora, tocou o espírito e o coração de todos, numa angústia incontida. Raras vezes se verifica um sentimento tão unânime de tristeza e de dor, como aquele que a cidade viveu ontem. A morte do Padre Américo, o pai dos gaiatos, o amigo e servidor dos pobres, o protector dos doentes e dos abandonados, foi, sem dúvida, um choque violento não só para quantos beneficiaram da sua obra admirável, como para quantos apreciavam as suas grandes e extraordinárias virtudes de sacerdote [O Comércio do Porto, 17 Julho 1956]. Do jornal católico Novidades, o seguinte: Morreu o Padre Américo. Ficará na História como um dos maiores amigos das crianças desamparadas e dos pobres desprotegidos. Morreu o Padre Américo. A triste notícia correu célere de cidade em cidade, de terra em terra, comovendo até às lágrimas não poucos dos que pelo pai dos desamparados e deserdados da sorte nutriam profunda simpatia e admiração. É que o Padre Américo, desde a hora em que, tocado pelo dedo de Deus, se lançou à salvação dos pequeninos filhos da desgraça e do acaso, abriu uma senda de luz e de beleza que o conduziria ao ponto de, em verdade, ser por todos considerado como uma das mais fulgurantes figuras do catolicismo em Portugal e mesmo no Mundo. O caminho trilhado, caminho espinhoso de santidade, já antes o haviam percorrido S. Francisco de Assis e S. João de Deus. Por isso, o seu desaparecimento haveria de causar profunda emoção, como facho de raro esplendor que se apaga. Foi o Padre Américo um autêntico revolucionário no bom sentido da palavra. A sua obra, que permanecerá com o espírito inconfundível da sua virtude, soou bem longe, além-fronteiras mesmo. Há-de a História registar o seu nome como um dos maiores educadores da juventude para a qual usava a linguagem do Evangelho. […] E mais adiante: No Porto junto ao Hospital de Santo António uma verdadeira multidão rezava e chorava. […] Foram milhares as pessoas que ali acorreram, mas eram sobretudo os pobres, os pobres que ele tanto amava [Novidades, 17 Julho 1956]. Depois, no mesmo periódico, ainda: Portugal inteiro – e é Portugal onde quer que exista um coração português – comoveu-se com a inesperada e trágica morte do Padre Américo. Decerto que nunca entre nós se derramaram tantas lágrimas por um morto. O seu funeral foi romagem de dor e saudade e ao mesmo tempo cortejo apoteótico de triunfo. É que os santos começam a viver precisamente no dia da sua morte. E por isso a saudade que na terra deixam parece casar-se com a alegria que no céu provocam [Padre Eurico Nogueira, Promotor da Justiça na Diocese de Coimbra, Novidades, n. 19.989, 25 Julho 1956]. De Lisboa, um testemunho: «Morreu o Padre Américo» – eis o grito de dor de milhares de portugueses espalhados por todos os cantos do mundo. Quase não há memória de morte tão sentida! Em todos os lugares a que já tinha chegado a fama do bondoso sacerdote houve choro e dor. Os seus gaiatos – as meninas dos seus olhos – prestaram-lhe as suas derradeiras homenagens com uma delicadeza e sentimento inexcedíveis [A. Lemos – Morreu o Padre Américo, in Voz da Verdade, n.1283, 29 Julho 1956].

Numa última vontade, o Padre Américo afirmou a sua pobreza voluntária e sacerdotal, de forma significativa. Eis o que deixou escrito para ser cumprido: A gente não sabe como, nem aonde, nem de que há-de vir a morrer. É um segredo de Deus: nisi solus Pater. Também não tenho a certeza se à hora da minha morte já terá nascido aqui o sol daquela pequenina e bendita Diocese [de Ales – Terralba, em Itália, sendo Bispo Antonio Tedde, 1948†1982]: que os funerais sejam iguais para todos. Sendo assim, não tenho nada a dizer. Não há ricos nem há pobres. Somos todos irmãos, e eu serei tratado em esta santa igualdade. Nada tenho a pedir. Porém, se as coisas foram então como são agora, eu tenho que dizer: nem pompas nem epitáfios. É um pobre que morre. Dê-se-lhe tudo e unicamente o que é costume dar-se aos pobres que morrem nas cidades e aldeias. Que os meus sucessores sublinhem esta derradeira vontade e a façam cumprir por amor de Deus [O Gaiato, n. 173, 14 Outubro 1950].

 Depois, deu outras indicações finais, em autógrafo que saiu em fac-símile: Atenção ao Gaiato n.º 173 de 14 d´Outubro 1950, aonde falo do meu enterro, na Nota da Quinzena. Aonde quer que eu morra, desejo ser tratado como um pobre. O Seminário de Coimbra tomou a obrigação de me rezar o Ofício de Defuntos e mandar celebrar um Trintário de Missas Gregorianas. Sou membro da Liga da Caridade, d´aquela Diocese, tendo sempre cumprido; e espero q. todos cumpram ao saberem da minha morte. Não desejo os paramentos do altar, mas somente a batina e descalço [O Gaiato, n. 324, 29 Julho 1956]. Deste modo, entrou descalço no Céu!…

Entretanto, depois do seu passamento e dos trâmites legais, o corpo do Padre Américo foi levado para a Capela mortuária do Hospital de Santo António, onde pelas 10 horas foi rezada Missa de corpo presente, presidida pelo Padre Adriano. Cerca das 17 horas, foi trasladado para a Igreja da Trindade. No dia 17 de Julho de 1956, nas suas exéquias fúnebres, foram celebradas várias Eucaristias, no Porto e em Paço de Sousa. Na Igreja da Trindade, pelas 7 horas, foi celebrada Missa, presidida pelo Cónego Nédio de Sousa, em representação do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes. Na Igreja da Trindade, perante o seu corpo, sereno, desfilaram milhares de pessoas de todas as condições sociais. O Largo da Trindade estava repleto de povo – um «mar de gente» vinda de todos os pontos da cidade e dos concelhos limítrofes, que se aglomera nas imediações da Igreja e se estende por todas as ruas do percurso. […] Não se trata do funeral dum homem vulgar – todos têm a certeza. Quem vai ali é um Santo, segundo o conceito das multidões.[…] [O Comércio do Porto, 18 Julho 1956]. Um pronto-socorro dos Bombeiros Voluntários do Porto foi transformado em carro funerário e militares dos vários Regimentos do Porto prestaram guarda de honra. Às 9 horas e 30 minutos, o lúgubre dobrar dos sinos assinalou a saída do funeral da Igreja da Trindade, presidido pelo Cónego Tomás Francisco Póvoa, Vice-Reitor do Seminário Maior de Coimbra, em representação do Bispo de Coimbra, D. Ernesto Sena de Oliveira.

O cortejo fúnebre atravessou a cidade do Porto e dirigiu-se para a freguesia de Paço de Sousa, conforme reportagem num jornal diário do Porto, do qual foi leitor, transcrevendo-se esta notas: Torna-se impossível descrever, em pormenor, o que se passou durante a travessia da cidade em direcção a Paço de Sousa – na Trindade, na Praça Sidónio Pais, na Cancela Velha, na Rua Formosa, no Campo 24 de Agosto, no Bonfim, na Rua S. Roque da Lameira e em plena estrada. Só a chegada da Trindade à barreira, na Ponte de Rio Tinto, demorou cerca de uma hora e meia. […] Foi uma viagem de Calvário, Via-Sacra de pungente dor demonstrada por quem, sendo do povo, amava o saudoso apóstolo dos pobres, seu pai espiritual, seu protector, que soube levar a efeito em métodos pacíficos – como dizemos atrás – uma revolução social que a História não deixará de registar. […] À entrada da Ponte de Areias, que limita as freguesias de Cete e de Paço de Sousa, organizou-se um cortejo, precedido do povo, das forças vivas e de elementos das Corporações de Bombeiros Voluntários daquelas freguesias e de Penafiel […]. Entretanto, surgiu uma avioneta, do Aero Clube do Porto, que deixou cair milhares de pétalas de flores e, presos a pequenos paraquedas, dois ramos. Um era do Aero Clube, o outro tinha a seguinte legenda: «Ao Pai dos pobres – os pobres do Porto». O avião da carreira da manhã, para Lisboa, sobrevoou a Igreja da Trindade, ao passar sobre a cidade, em última homenagem ao Padre Américo […] [O Comércio do Porto, 18 Julho 1956].

 

 Neste acontecimento extremamente marcante estiveram presentes autoridades religiosas, civis [v.g., Dr. Domingos Braga da Cruz, Governador civil do Porto; Dr. José Guilherme Melo e Castro, Sub-Secretário de Estado da Assistência Social] e militares. Foi testemunhado por uma multidão de pessoas em lágrimas ao longo do seu percurso, com mais de um milhar de automóveis, desde o Porto, em grande emoção: E o povo, o Porto inteiro, ajoelha-se à passagem do Amigo mais amigo dos pobres. Ajoelha-se, reza – e chora [Diário do Norte, 17 Julho 1956]. Nesse itinerário penoso, seguiram-se outras localidades – Valongo, Vilarinho, Gandra, Baltar, Cete – até à passagem do Rio Sousa, pela ponte de Areias, na EN 106-3, entrando assim na histórica freguesia do Salvador de Paço de Sousa, vizinha de Galegos, em cujas terras beneditinas se encontram raízes bem profundas e ramos dos seus avoengos.

Por fim, o cortejo fúnebre chegou ao lugar do Mosteiro, entrou no portão principal da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, subiu a Avenida Eng.º Duarte Pacheco e terminou no largo da Capela da Aldeia do Gaiato, altaneira e linda. Uma década antes, Padre Américo tinha escrito o seu [pres] sentimento: Peço todos os dias. Imploro! Espero. Confio. Desejo acabar os meus dias nos sentimentos da Cruz. É a vida que faz a morte. Hei-de passar rentinho ao cruzeiro e às alminhas, naquele dia tremendo, grande como nunca fui – porque morto [O Gaiato, n. 62, 13 Julho 1946]. A seguir, foi celebrada Missa de corpo presente, presidida por D. Rafael da Assunção, O.F.M., Bispo de Limira, que afirmou: Estou aqui – salientou – como amigo pessoal e admirador do Padre Américo, e para fazer um requerimento: que Deus lhe dê entrada no Céu. […] A Igreja, Portugal e o Mundo correram o risco de perder um grande padre – correram o risco de perder o maior apóstolo dos nossos dias […]. O Padre Américo era, realmente, um grande homem e um grande sacerdote [O Comércio do Porto, 18 Julho 1956]. Depois, especialmente os seus gaiatos desfilaram com tristeza e saudade, junto à urna, despedindo-se de Pai Américo – o seu maior amigo – deste modo: Todos se baixaram e beijaram, filialmente, a testa do Padre Américo. As lágrimas banharam-lhes as faces, e as cenas que pudemos observar são de cortar o coração [ibidem]. O cortejo fúnebre desceu, então, a Aldeia dos Rapazes para o Terreiro de Gamuz e entrou na Igreja Paroquial do Salvador de Paço de Sousa, onde foi rezada outra Missa, concelebrada por vários sacerdotes e muito povo. De lembrar justamente que os seus Pais, Teresa e Ramiro, contraíram Matrimónio nesta Igreja e também nela Padre Américo celebrou Missa Nova! Finalmente, pelas 15 horas, a urna com o corpo do Padre Américo deu entrada no cemitério paroquial de Paço de Sousa. Os monges do Mosteiro de Singeverga cantaram as Exéquias solenes. O Dr. Eduardo Augusto Frederico de Albuquerque, advogado, fez um elogio fúnebre, em que afirmou a dado passo: Orava em silêncio – mais praticando que falando!… Então, à vista de toda a gente – em especial familiares, Rapazes (seus filhos), Padres da Rua, povo da terra e da região, e muitos amigos – o corpo do Padre Américo desceu ao pó da terra, sendo sepultado no cemitério de Paço de Sousa [a nascente], ao lado do jazigo da sua família da Casa de Antelagar. Ficou temporariamente junto ao Mosteiro de Paço de Sousa, onde outrora [séc. XII] quis repousar o sono eterno D. Egas Moniz, de Ribadouro, símbolo da lealdade portuguesa.

O acidente do Padre Américo em S. Martinho do Campo – Valongo, a sua morte no Porto e o seu funeral para Paço de Sousa tiveram enorme eco na Igreja, na sociedade e na comunicação social durante longos dias. Foi geral a consternação em Portugal inteiro, causada pela morte do grande apóstolo do bem, v.g. na cidade do Mondego: Todos os estabelecimentos comerciais de Coimbra têm meias portas encerradas em manifestação de pesar pela morte do Rev. Padre Américo. Centenas de telegramas de condolências foram remetidos desta cidade para a Casa do Gaiato de Paço de Sousa, e muitas individualidades de Coimbra seguiram para o Porto, a fim de participarem no funeral [Diário do Norte, 17 Julho 1956]. Entre inúmeras expressões de sentimentos de dor, v.g.: Voz da Igreja – Está de luto Igreja em Portugal e mais órfãos rapazes da rua. Ajoelho oferecendo patena Santa Missa grande Obra evangélica realizada. Cardeal Patriarca [D. Manuel Gonçalves Cerejeira]; Voz dos Pobres – Pai Américo! Pai Américo! não respondes… ai que estou órfão! Perdi o meu Pai!!!; Testemunho de um Padre da Rua – Os desígnios de Deus constituíram-me seu «cireneu» os últimos dois anos. Passámos juntos a noite derradeira. Meus ouvidos indignos escutaram suas últimas palavras conscientes. O peso da sua Cruz ficou-me por herança. E agora já não sou eu que ajudo, é ele que me conforta até ao cimo da crucifixão. Padre Carlos [O Gaiato, n. 324, 28 Julho 1956].

No 30.º dia do passamento do Padre Américo, na Igreja da Trindade, foi celebrada uma Missa presidida pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, sublinhando que a lição da sua vida: resume-se toda naquela evolução fonética e semântica Padre Américo – Pai Américo […]. Sendo que foi grande no amor do próximo porque foi grande no amor de Deus [vd. Voz do Pastor, 25 Agosto 1956]. Cinco anos depois da sua morte, em 17 de Julho de 1961, os seus restos mortais foram trasladados para a Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa e jazem a norte, sob um belo vitral com um pelicano, em simples campa rasa de granito, com uma cruz em relevo e esta inscrição na pedra da sepultura: ERA 1956/ AMÉRICO MONTEIRO D´AGUIAR/ PRESBÍTERO.

 O primeiro Postulador da Causa de glorificação canónica, D. Gabriel de Sousa, O.S.B., escreveu assim: milhares de pessoas que, de toda a parte, visitam a Aldeia, vão ajoelhar junto daquela campa e rezar, convencidas de que quem tão caridoso foi na Terra, sem dúvida o será mais, se possível, no Céu [Portucalensis/ Canonizationis Servi Dei/ Americi Monteiro de Aguiar/ Sacerdotis/ Petitiones et Articulos. [1990], [dact.], p.18].

O Padre Augusto Nunes Pereira, condiscípulo do Padre Américo no Seminário de Coimbra e companheiro de ordenação presbiteral, escreveu um precioso testemunho, no jornal diocesano de Coimbra, que vale bem a pena transcrever na íntegra, como memória viva da sua vida cheia, de amor a Deus e ao próximo, traçando um perfil seguro, pela sua proximidade. Eis:

Morreu o Padre Américo, mas a sua obra é imortal.

A notícia do desastre que levou o P.e Américo à cama dum hospital, e dali para a eternidade, encheu de consternação Portugal inteiro. E é escusado dizer porquê. Todo o país o conhecia, toda a gente admirava as suas virtudes; os pobres tinham nele um pai carinhoso, e os ricos um admirável despertador que lhes apontava a hora actual da caridade cristã.

Profundo e persistente doutrinador, e ao mesmo tempo dotado dum forte realismo prático e operoso, conseguiu galvanizar a sociedade portuguesa de tal forma que muitos dos seus empreendimentos se vão generalizando ao país inteiro.

É difícil, é mesmo impossível, traçar em duas linhas o perfil deste homem. Mais difícil ainda mencionar todo o bem que espalhou sobre a terra.

No dia 28 do corrente faz 27 anos que, na capela da Anunciação, do Seminário de Coimbra, ele recebia, juntamente com mais dois companheiros, a ordem do presbiterado. E esse facto recorda-me os tempos do Seminário, quando o Américo, ainda estudante, mas homem culto, viajado e experimentado, se fazia notar pela sua jovialidade, pelo zelo junto dos companheiros, pelo interesse que tomou junto dos superiores para que se introduzissem certas reformas urgentes, e pela sua piedade intensa. São desse tempo estas palavras: «Para mim, o dia em que eu não comungar, que os anjos do céu me levem para a comunhão eterna».

Alguns sacerdotes lhe ficaram devendo a perseverança da sua vocação, e todos nós que dele se abeirara receberam o influxo benfazejo da sua palavra quente e do seu exemplo vivo.

Escreveu no Seminário, para a revista «Lume Novo», que ajudou a fundar, alguns belos artigos, nos quais se revelou um admirável artista da pena. Um deles, por sinal um belo conto, ocorreu-me agora por causa da terminação «Accersitus ab Angelis» – chamado pelos Anjos.

Mas já antes escrevia. Escrevia, nas suas viagens de férias, o diário de bordo, só com esta finalidade: para depois o ler a uma rapariguinha paralítica, que lá na terra dele jazia numa cama e se deliciava com esta leitura. Já era o carinho pelos doentes e infelizes. O jornal «O Gaiato» foi depois o seu diário de bordo, mais ampliado e aperfeiçoado, dos vinte e sete anos da sua viagem de padre da rua, em demanda do porto – o Céu.

Começou por visitar pobres; passou depois a organizar colónias de férias para os gaiatos da baixa de Coimbra; fundou as Casas do Gaiato; criou o «Património dos Pobres» e incendiou o país nas labaredas desta grande paixão: o amor pelos pobres e desgraçados.

O «Correio de Coimbra» não esquece a honra que lhe deu o Padre Américo de nas suas colunas publicar as suas impressões desses primeiros anos de apostolado, depois reunidos nos volumes «Pão dos Pobres».

Descalço, e vestido apenas de batina, conforme sua vontade, baixou à sepultura o Padre Américo. Mas não morreu com ele a sua obra. A sua obra é imortal. O que fez está feito para a eternidade. E os seus companheiros, os Padres da Rua, saberão continuar. E quantos amaram o Padre Américo em vida continuarão a amá-lo no seu exemplo e na sua obra.

Só quando não houver em Portugal uma família sem lar, um lar sem pão, ou pão sem alegria, só então, por desnecessária, deixaria de subsistir a obra do Padre Américo.

Que descanse em paz, e que lá no céu, onde piamente esperamos já se encontre, continue a ser para todos os gaiatos e para todos os pobres, o Pai Américo./ N.P. [Correio de Coimbra, n. 1736, 26 Julho 1956, p.1-2].