O Cinema visto pela Teologia (31): o filme “The survivor”

Uma leitura do filme “The survivor*

Por Alexandre Freire Duarte

Os melhores filmes talvez sejam aqueles que trazemos connosco, a pensar neles, para fora do espaço em que os vimos. “The survivor” é um desses casos. Por detrás de uma obra que mistura, habilmente e à primeira vista, duas formas de violência – a monstruosa do holocausto e a afoita do boxe –, somos confrontados, até vermos as nossas vísceras subirem à mente, com um drama psicológico focado nas mais agónicas feridas da memória. Aquelas que (podendo ser tão trágicas, que só permitem que se sobreviva sob o peso assombrador da culpa) muitos carregam como parasitas que dilaceram a sua existência e as dos seus.

Baseado em eventos reais, “The survivoré um drama excêntrico, comovente e terrivelmente doloroso. Nele, cada instante que passa dá-nos a ver (a um ritmo bem definido, que nos deixa habitar no exibido de uma forma reverencial e sóbria) uma vida a destruir-se para sobreviver e, depois, a sobreviver destruída. Nem o extraordinário e cativante desempenho da personagem principal nos deixa repousar, também porque nada nele é ostensivo, antes surge bem articulado com o do impressionante restante elenco e uma dose inesperada de humor cortante e ácido.

Poucos de nós terão memórias tão vincadamente atrozes como as da figura central deste filme. Mas sei que não serão poucos os que encaram a vida, não como uma oportunidade de fecundidade amorosa para o Reino, mas como uma mera renúncia aflita por não se conseguirem livrar do peso das suas recordações. Um peso em parte autoinfligido, mas igualmente imposto por diversos fatores em que a alternativa passaria por se deixaram ser esmagados pelas injustiças e crueldades da vida, as quais poderiam embrutecê-los grotescamente até que, deformados pela impaciência racionalizante e a frustração obsessiva, deixassem de se reconhecer.

Contudo, mesmo quando uma pessoa se sente esmagada pelos, mais ou menos extensos, dilemas por que teve que navegar para subsistir, a Teologia cristã diz-nos que tal sujeito pode ter a certeza de que a graça do Senhor sempre o pode (re)erguer. Tal como nesta obra, a vida não dará muitas respostas, pois só a Vida é a Resposta. Todavia, quando Esta embrenha-se na nossa pessoa, os “nós górdios” que, até então, pareciam traumaticamente inquebráveis, vão-se desatando e Deus deixa de ser Alguém distante ou obsidiante, e surge como uma Intimidade de amor bondoso.

A vida é complicada, e a Vida em Cristo, diante de um mundano que nos hostiliza, não é propriamente uma linha só ascencional. Muitas vezes, as escolhas que nelas fazemos podem empurrar-nos a viver de rastos no meio do pó do sangue passado, em vez de andarmos verticalmente e em frente ao encontro da graça oportuna de um Deus-Amor que nos busca continuamente.

Não há dúvida: as maiores lutas, tal como as maiores traições, são as que nos são interiores, e delas só sairemos se as colocarmos nas mãos do Senhor. Fazendo isto, unindo as nossas feridas salgadas às feridas sanadas do Senhor, viveremos na evidência do amor que, escorando a fé e a esperança, tudo pode aproveitar e salvar.

(* EUA, 2021; dirigido por Barry Levinson, com Ben Foster, Peter Sarsgaard, John Leguizamo)