
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
Francisco convida-nos a viver a maravilha de uma Liturgia que é verdade e beleza a partir da sua fonte e não a partir de qualquer apreciação extrínseca. No centro da fé cristã está a fé na ressurreição do Senhor Jesus. Mas esta fé não é uma abstração: «um conceito, uma ideia, um pensamento» (DD 10). O Ressuscitado não é uma «recordação da recordação de outros». «A fé cristã ou é encontro com Ele vivo, ou não é» (DD 10). E é esta a verdade e beleza da Liturgia: o encontro real com o Ressuscitado.
«A Liturgia garante-nos a possibilidade desse encontro» (DD 11). A Liturgia «é o modo concreto, pela via da encarnação, com que Ele nos ama; é o modo com que sacia aquela sede de nós que declarou na Cruz (Jo 19, 28)» (DD 11).
A porta de acesso a este encontro real de pessoas vivas é o Batismo, início e fundamento de toda a participação litúrgica. Foi «o nosso primeiro encontro com a sua Páscoa»; em que nos foi dada, em virtude do Espírito Santo, a possibilidade de morrer e ressuscitar com Cristo, de sermos como que enxertados no Cristo pascal «em perfeita continuidade com a encarnação» (DD 12). Prolongando a reflexão de SC 5, pelo Batismo, «nós tornamo-nos osso dos seus ossos, carne da sua carne» (DD 14). «Sem esta incorporação não há qualquer possibilidade de viver a plenitude do culto a Deus» (DD 15). No Batismo recebemos o dom de nos tornarmos «filhos no Filho» e de, assim, podermos participar no único e definitivo ato de culto perfeito: a Páscoa de Cristo. De facto, o sujeito da Liturgia é sempre e só Cristo-Igreja: Cristo Cabeça e o seu Corpo que é a Igreja santa dos batizados.
Esta redescoberta do valor teológico da Liturgia, fruto amadurecido do movimento litúrgico, culminou no capítulo I de Sacrosanctum Concilium. Dela partiu a reforma litúrgica. Francisco situa-se na senda do Concílio mas num momento diferente: não já o da reforma mas o da sua receção e aprofundamento: «com esta carta gostaria simplesmente de convidar toda a Igreja a redescobrir, guardar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza do celebrar cristão e das suas necessárias consequências na vida da Igreja não fosse deturpada por uma compreensão superficial e redutora do seu valor ou, pior ainda, por uma instrumentalização dela ao serviço de uma qualquer visão ideológica, seja ela qual for» (DD 16).
E é situando-nos no hoje da vida da Igreja que Francisco valoriza a Liturgia como poderoso antídoto contra a insidiosa tentação da mundanidade espiritual alimentada pelo gnosticismo e pelo neopelagianismo.
O primeiro alimenta um subjetivismo individualista em que se recusa tudo o que transcende os limites da razão ou do sentimento; o segundo anula o valor da graça, substituída pelo voluntarismo ético, que alimenta um «elitismo narcisista e autoritário». «A Liturgia é, pela sua própria natureza, o antídoto mais eficaz contra esses venenos» (DD 18). A propósito se recorda que já Pio XII, na Mediator Dei, tinha declarado insuficientes e redutoras tanto a visão esteticista como a conceção juridista da Liturgia.
Perante o veneno do subjetivismo gnóstico, «a celebração litúrgica liberta-nos da prisão de uma autorreferencialidade alimentada pela própria razão ou pelo próprio sentir: a ação celebrativa não pertence ao indivíduo mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo. A Liturgia não diz “eu” mas “nós” e qualquer limitação à amplitude deste “nós” é sempre demoníaca. A Liturgia não nos deixa sós na busca individual de um suposto conhecimento do mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, como assembleia, para nos conduzir para dentro do mistério que a Palavra e os sinais sacramentais nos revelam. E fá-lo, em coerência com o agir de Deus, seguindo a via da encarnação, através da linguagem simbólica do corpo que se prolonga nas coisas, no espaço e no tempo» (DD 19).
Perante a presunção neopelagiana de uma salvação graças ao esforço pessoal, «a celebração litúrgica purifica-nos proclamando a gratuidade do dom da salvação acolhida na fé. Participar no sacrifício eucarístico não é uma conquista nossa…A Liturgia não tem nada a ver com um moralismo ascético: é o dom da Páscoa do Senhor que, acolhido com docilidade, faz nova a nossa vida. Não se entra no Cenáculo a não ser pela força de atração do seu desejo de comer a Páscoa connosco» (DD 20).