Uma nova Carta Apostólica sobre Liturgia

Foto: João Lopes Cardoso

No passado dia 29 de junho, solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, o Papa Francisco ofereceu à Igreja o mais importante documento do seu magistério litúrgico: a carta apostólica Desiderio desideravi [= DD] sobre a formação litúrgica do povo de Deus.

A importância que lhe atribuímos vem-lhe do facto de não ser uma intervenção ocasional, como tem acontecido em homilias e discursos circunstanciais, ou a propósito de decisões jurídicas relativas à disciplina litúrgica da Igreja católica. Nunca Francisco tratou com tão amplo e profundo desenvolvimento o tema Liturgia nesta meditação que oferece à Igreja, convidando-a a partilhar o seu assombro perante a maravilha do mistério pascal em que nos é dado participar mediante a celebração dos divinos mistérios da nossa fé. São 65 parágrafos densos de sabedoria e enlevo que aguardam ainda tradução portuguesa mas que já podem ser lidos em 5 línguas na página web do Vaticano.

Significativamente, o texto termina com uma citação da Carta de São Francisco de Assis a toda a ordem (2, 26-29) que, por nos situar no registo em que toda a Carta deve ser lida, aqui  transcrevemos na versão da edição portuguesa das Fontes Franciscanas:

«Que o homem todo se espante,
que o mundo todo trema, que o céu exulte,
quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote,
está presente Cristo, o Filho de Deus vivo!

Oh! grandeza admirável, oh! condescendência assombrosa!
Oh! humildade sublime, oh! sublimidade humilde,
que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus,
se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação,
nas aparências de um bocado de pão.

Vede, irmãos, a humildade de Deus
e derramai diante dele os vossos corações;
humilhai-vos também vós, para que ele vos exalte.

Em conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós,
a fim de que totalmente vos possua
Aquele que totalmente a vós se dá.
»

Como é da praxe, esta Carta Apostólica será conhecida pelas duas primeiras palavras do texto oficial: Desiderio desideraviDesejei ardentemente comer convosco esta Páscoa antes de padecer (Lc 22,15). Na fonte da Liturgia cristã e da sua sublimidade não está o comportamento ritual do homem no seu esforço por se religar ao divino: está sim este desejo humano-divino do Senhor Jesus, está a iniciativa do amor trinitário. A Liturgia, explica o Papa, é dom da Páscoa do Senhor, dado e acolhido na humildade e concreção do rito, habitado pelo Espírito, segundo a lógica da Encarnação.

A liturgia é o «hoje» da história da salvação: a este entendimento dedica Francisco os nn. 2-9 de DD. É, aliás, a doutrina do primeiro capítulo de Sacrosanctum Concilium que, neste ponto, se apoia na autoridade da oração da Igreja: «Todas as vezes que celebramos o memorial deste sacrifício, realiza-se a obra da nossa salvação». Francisco foca-se no mistério pascal e no núcleo irrenunciável da nossa fé: a Ressurreição do Senhor Jesus. Escreve: «Se tivéssemos chegado a Jerusalém depois do Pentecostes e tivéssemos sentido o desejo não só de ter informações sobre Jesus de Nazaré, mas também de o poder encontrar ainda, não teríamos tido outra possibilidade … de um verdadeiro encontro com Ele a não ser a daquela comunidade que celebra» (n. 8). Essa celebração não é uma representação de tipo teatral – uma encenação (mimese) – da última Ceia mas uma presença sacramental (anamnese) na lógica da encarnação: «Iluminada pelo Espírito Santo, a Igreja entendeu desde o primeiro instante que aquilo que era visível de Jesus, aquilo que se podia ver com os olhos e tocar com as mãos, as suas palavras e os seus gestos, o caráter concreto do Verbo encarnado tudo d’Ele tinha passado para a celebração dos sacramentos (n. 9. Francisco cita aqui uma famosa homilia de São Leão Magno).