
Por Jorge Teixeira da Cunha
A Conferência Episcopal Portuguesa teve a coragem de aceitar e de promover uma Comissão Independente para investigação dos casos de abuso de crianças e menores por clérigos e outros agentes de pastoral. Mas essa é apenas uma parte da solução para o grave problema. Fica a fazer falta algo mais. Algo que é próprio da acção da Igreja: uma comissão e uma prática de reconciliação.
O trabalho da Comissão Independente vai progredindo e o resultado tem-se mostrado cada vez mais alarmante, tendo em conta o número de casos que vai na ordem de mais de um milhar. Mesmo que o número não fosse o que é, a gravidade não deixaria de ser enorme. Não nos pode também deixar descansados o facto de muitos casos estarem judicialmente prescritos ou dizerem respeito a pessoas que já morreram ou estão em velhice extrema. O facto continua a clamar e, a nosso ver, seria necessário fazer algo mais do que está a ser feito. Entregar as pessoas ao “braço secular”, como se dizia em outros tempos, não é modo de proceder. Tanto que esse método já tem estado na origem de diversas tragédias, como é o caso do suicídio dos culpados, como já foi noticiado em outros países.
A evidência dos abusos de crianças e menores é uma crise de amplas proporções que clama por decisões excepcionais e por uma coragem fora do vulgar. De facto, a crise que a Igreja está a passar é comparável aos tempos mais críticos que a Igreja já viveu no seu passado, como quando esteve em causa a sua independência do poder temporal na Idade Média, a crise da Reforma e do Concílio de Trento e outros momentos em que a Barca de Pedro oscilou, batida por ventos de tempestade. Nesses momentos, houve a capacidade e a santidade de gente que pôs no terreno práticas de conversão efectiva que salvaram a instituição e inovaram a forma de viver. Por isso, faz falta algo mais nos dias que correm em que o pesadelo do resultado da Comissão se vai avolumando no horizonte.
A nosso ver faz falta um programa de reconciliação. Sabemos que a Igreja tem a missão de reconciliar e que a reconciliação é a única forma de extirpar o mal do nosso mundo. A Igreja não pode confiar o problema dos abusos apenas à Comissão Independente. As pessoas que a integram fazem o seu melhor, com a melhor das boas vontades e sem o menor intento de denegrir a função da fé religiosa. Mas isso não basta. A justiça deste mundo não pode ser posta em causa na sua validade e necessidade, de forma que quem prevaricou pague pelos seus actos. Mas a justiça precisa de ser completada com a reconciliação e o perdão que são o único modo de poder continuar a viver depois do mal. E todos os seres humanos necessitam de ser reconciliados, uns mais outros menos, uns mais cedo outros mais tarde. A Igreja portuguesa tem de mobilizar as suas melhores energias para enfrentar a crise que se avizinha, por forma a evitar o triste espetáculo dos seus membros a arder na fogueira da justiça e nada ter sido feito para salvar as pessoas. O mecanismo do bode expiatório oferece-se como forma de compensação psicológica e cultural. Mas não salva nem o agressor nem a vítima, nem mesmo o juiz. Por isso, se queremos estar à altura dos tempos de angústia, será necessário fazer algo enquanto é possível. Isso supõe coragem e sabedoria por parte das pessoas mais responsáveis da nossa Igreja.
Não há dúvida de que a crise dos abusos de crianças e jovens constitui um momento de avanço moral da humanidade. As crianças foram abusadas durante milénios impunemente e agora chegou o mento de as defender e de lhes reconhecer a dignidade. A Igreja foi apanhada nesta dolorosa curva da história. Também o ministério da Igreja será diferente no futuro por causa desta crise. O sacerdote à imagem do monge teve grandeza na Idade Média; o sacerdote celibatário no mundo fez o esplendor do catolicismo moderno. Como será o sacerdote do futuro? Ainda não sabemos. Mas esta crise vai certamente dar um grande impulso à sua configuração.