O que nós somos!…

Por João Alves Dias

Um mês é passado…

No dia 4 de junho, enviei o email “Em Dor!” aos meus colegas do Coro Gregoriano do Porto: “Amigos, estava a entrar para um concerto na Casa da Música quando o Meneses me deu a notícia da morte repentina do nosso Álvaro, na igreja de Valongo. Deus lhe dê o eterno descanso. Connosco ficam as lágrimas…”

Com surpresa minha, o concerto ‘Mar Sedutor’ começou com a “Sinfonia da Requiem” que Benjamin Britten dedicou à memória de seus pais. E eu recordei o nosso amigo que, ainda em 7 de maio, cantou connosco o “Requiem” gregoriano, numa cerimónia que lembrou as vítimas da Ucrânia e os amigos recém-falecidos.

O primeiro andamento, ‘Lacrymosa’, abriu “com um ímpeto rítmico feroz” imposto pela percussão, seguido por um tema suave nos violoncelos. No início do segundo andamento, “Dies irae”, surgiu o mesmo entrechoque de sentimentos em que ‘a entrada das flautas em pianíssimo contrasta pela grande vivacidade e dinamismo, pelo recorte rítmico e pela rudeza de contrastes tímbricos’.

Os ‘últimos compassos’ do terceiro andamento, “Requiem aeternam”, ‘chegaram com um profundo e contido acorde final que nos deixa o aconchego de uma resignação íntima e sincera ao qual só o silêncio tem como responder’.

Este paradoxo de sentimentos, que a música suscita e a ‘folha de sala’ bem explicita, correspondia perfeitamente ao meu estado de alma que sofreu um choque violento com a notícia da morte abrupta do amigo e, pouco a pouco, ia entrando num progressivo apaziguamento de sentimentos afeiçoados pela memória e pela esperança.

Seguiu-se a composição “Still, para violino e orquestra sinfónica”, de Rebecca Saunders, com a solista Carolin Widmann. E foi no decorrer da atuação desta violinista, de prestígio mundial, que me surgiu o título para este artigo. Enquanto tocava, um dos seus cabelos louros desprendeu-se e foi embaraçar-se no arco do violino, dificultando o seu esmero. E eu recordei o desabafo de minha mãe face à morte repentina de um vizinho: “É o que nós somos!…” Um cabelo que se desprende (cf Lc, 12,7) ou “uma neblina que aparece e logo se dissipa” (Tg, 4,14).

Mas homem será só isto?

No final da última composição, “La Mer” de Claude Debussy, a fúria do vento e do mar acaba em apoteose.

Assim a vida, pensei eu ao ler, no facebook, a mensagem da Associação Voluntariado Hospital S. João: “Lamentamos informar que o nosso Coordenador-Geral, Álvaro Ribeiro, faleceu esta tarde”. E ao ver as centenas de ‘gosto’ e, entre muitos, o comentário de um dos ‘voluntários’: “Homem Bom, Amigo, Sempre atento ao Próximo”.

Uma pessoa assim não passa como o vento. A sua memória perdurará e encontrará em Deus o acolhimento reservado aos que se dedicaram aos outros. (cf. Mt 5,1-12).

Foi com este pensamento que, na manhã seguinte, participei nas “Festas Finais Catequese” na paróquia de S. Nicolau, Porto, onde a nossa Clarinha celebrou a “Festa do Pai Nosso”. E foi de olhos humedecidos e com as duas netas mais novas agarradas às minhas pernas que, no final, cantámos: “Vem daí, vem daí. É Deus que te chama”.

Nas exéquias, o Coro Gregoriano emocionou-se ao ver sobre o caixão a sua veste coral. E foi com a voz embaciada de saudade que se despediu do companheiro de alongados caminhos, cantando “In Paradisum“. A Esperança é lenitivo. Mas o ‘para sempre…’ e o ‘nunca mais…’ custam muito…

É isto que nós somos. Um misto de memória e esperança, de alegria e sofrimento. Somos uma síntese de finito e infinito; de temporal e eterno; de humano e divino. Assim o creio.