Dramas e esperanças

Por M. Correia Fernandes

Tempos complexos e difíceis são aqueles que vivemos. Já nos fomos esquecendo do Covid, mas vamos suportando os efeitos de uma  guerra fratricida, que o Papa Francisco comparou ao universo simbólico do mito de Caim e Abel, que traduz a emergência da maldade humana e do ódio instalado. A escassez alimentar, os dramas dos migrantes, as questões climáticas e os interesses económicos que promovem teorias de conspiração de que se pretendem aproveitar, a linguagem violenta que nos assola são apenas pontas de icebergues em que se revolve a sociedade.

A decisão recente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América de abolir a legalização do aborto foi tema que inundou a comunicação social destes dias, e mereceu a condenação do próprio Presidente americano, que o considerou um retrocesso civilizacional. As notícias afirmaram que “O Vaticano aplaudiu”. De facto o Secretário para os Leigos, a Família e a Vida considerou tratar-se de uma “decisão histórica pela defesa da vida, salientando que a Igreja Católica sempre defendeu a vida da mulher e da criança”.

As legislações da maioria dos países tem vindo a legalizar o aborto. Como sabemos, em Portugal  o referendo sobre o tema foi aprovado de forma não vinculativa, mas a legislação subsequente funcionou como se tivesse sido aprovado. De facto, apenas cerca de 22 por cento do eleitorado português manifestou afirmativa concordância com o pressuposto da questão formulada, tendo-se no entanto tornado prática corrente nos hospitais.

O problema essencial  é a confusão entre o direito e a prática. O aborto não pode ser considerado um direito humano, e nem consta da naturalmente da sua Declaração Universal. A não cominação de pena à sua prática constituiu um ponto de vista diferente.  O direito da mulher sobre o seu próprio corpo é igualmente um argumento falsificado e falacioso, uma vez que igual argumento vale para o corpo da criança. O bíblico “não matarás”, também sujeito a toda a espécie de transgressões, não fica invalidado por estas, e os ideais de paz não são destruídos pela presença da guerra.

Por isso, a decisão do Tribunal americano é apenas a afirmação de uma questão de princípio, que depois a legislação dos Estados irá aplicar ou não aplicar, conforme as conveniências. Mas a questão de princípio é essencial: o aborto não pode ser considerado um direito. Proclamar o aborto como um direito é um princípio anti-civilizacional. A mensagem bíblica e evangélica é uma afirmação da vida e um grito permanente de esperança ativa. Nenhuma espécie de transgressão a pode invalidar.

Foi certamente neste sentido que os bispos católicos dos Estados Unidos afirmaram que “a América foi fundada na verdade de que todos os homens e mulheres são criados iguais, com direito, dado por Deus, à vida, à liberdade e à busca da felicidade” e pediram que os “eleitos aprovem leis e políticas que promovam e protejam os mais vulneráveis”. (Ecclesia, 25 de junho de 2022). Não foi apenas a América, nem a Europa, que devem ter por fundamento esse princípio universal e criador de humanidade da convivência fraterna.

A proclamação do Reino de Deus é uma proclamação da Justiça, do  Amor e da Paz, do valor da vida humana como dom que devemos respeitar e ajudar a edificar, como é tarefa do carinho para com as crianças, da educação para os jovens e do sentido solidário para todos. Assim ensinava São Gregório Magno, no século VI: “Sejam as coisas temporais uma ajuda para o caminho, e as eternas o desejo do vosso peregrinar… Não vos torneis escravos do que é vosso, deixando-vos arrebatar pelo amor aos bens terrenos”. (VP, 15 de junho, p. 12). Esse ser escravo do que é vosso,  e mais, ser escravo do que se pretende adquirir  é o retrato da nossas sociedades de hoje, vivendo na ânsia incontida e absorvente do domínio e da posse, o monstro que quanto mais come e consome, tando menos se farta, como disse António Vieira a respeito da guerra.

Essa é também a mensagem de uma das mais interessantes orações da liturgia, que traduz o sentido de uma espiritualidade incarnada, que pode ser norma de ação para qualquer homem ou mulher, trabalhador ou empresário, intelectual  ou funcionário: que saiba usar os bens temporais de forma a alcançar os bens eternos. E os bens eternos não são apenas os do futuro, mas os do presente, os do sentido da vida, do bem comum, da solidariedade, os do sentido de toda a construção humana.