
Por Jorge Teixeira da Cunha
Os últimos tempos têm trazido ao nosso encontro um conjunto de acontecimentos que nos dão que pensar como crentes e como pastores. A guerra voltou à Europa e opõe cristãos a cristãos sem que as Igrejas tenham um real influxo na procura da paz. A resolução dos conflitos pela violência, que sempre lamentámos como nódoa do passado, voltou. O próprio Papa Francisco fala de uma terceira guerra mundial que parece já ter começado. O nosso parlamento aprovou na generalidade a despenalização da morte assistida para moribundos e para doentes incuráveis. Outras despenalizações de coisas imorais e outras garantias de direitos fraturantes já estão em vigor ou em vias disso. Como fazer um juízo? O nosso tempo está a afastar-se da fé e da moral que o cristianismo longamente fundou? A fé perdeu todo o real influxo na condução da nossa Europa? Seremos um continente errante sobre as águas agitadas sem que a memória da fé tenha a mínima utilidade para a nossa orientação? É uma dolorosa situação a que nos encontramos hoje.
Não nos serve de consolação dizer que são as consequências da evolução do cristianismo as que que estão a comandar a evolução da cultura de hoje. Foi isso que dissemos quando a cultura humanista da modernidade atirou contra a Igreja o reconhecimento dos direitos humanos, o reconhecimento das liberdades cívicas e políticas, a moralização do trabalho e a socialização da educação, dos cuidados de saúde, e assim por diante. Mesmo tendo crescido contra a Igreja, estes valores eram tipicamente cristãos. A Igreja não teve outro remédio que não fosse religar-se a esse novo estado de coisas que, no fundo, vinha do Evangelho, mesmo envolvido em muitas contradições. Mas hoje, podemos fazer o mesmo raciocínio? As leis despenalizadoras de comportamentos imorais como o aborto, a eutanásia, a prostituição, os direitos estranhos à procriação tecnocrática, as reivindicações de género, são também prolongamentos da liberdade a que Jesus nos iniciou? O caso é mais complicado e temos de ser mais prudentes.
Esta segunda vaga de direitos é, apesar de tudo, mais contraditória do que a primeira. Se a primeira já era minada por um idealismo ético misturado com ganância, a actual vaga é ainda mais minada pela ambiguidade. Vejamos alguns exemplos: temos liberdade para pedir ajuda para morrer, mas não temos liberdade para escolher a escola que queremos frequentar; podemos exigir ajuda para mudar de sexo sendo menores, mas não podemos consumir bebidas alcoólicas em público; podemos ensinar na escola estatal o niilismo ético, mas não podemos ensinar a religião como escuta autêntica do divino e expansão do desejo de viver.
Hoje como ontem, a fé e a Igreja têm muito a fazer para orientar o caminho da liberdade. Isso é urgente, sob pena de sermos constantemente apanhados no caminho ambíguo de tentar agir sobre o perdido. Jesus iniciou-nos à invenção da realidade na sua versão mais autêntica e mais definitiva. Não podemos ficar sempre num apego medroso ao já experimentado e ao já pensado, tantas vezes de proveniência duvidosa. Hoje parece ser urgente mais do que nunca dar a viver a experiência da humanidade feliz que se encontra na abertura do espírito que a fé proporciona. Urge mais a mística do que a moral, a experiência do que a representação, a vivência do que a doutrina.
Apesar de tudo, a cultura de hoje não contém apenas ruínas daquilo que nos parece ser um tempo de perda. Contém também os rudimentos do porvir ainda não vivido. Precisamos de substituir a representação da vida pela experiência da vida. Precisamos de mostrar como a fé é o robustecimento da subjectividade contra toda a egolatria e todos os ventos de doutrina. Tanto quanto parece, está latente no nosso tempo uma abertura para isso. Podemos esperar que a fé nunca deixará de ter futuro.