Almada, nome de guerra

Por M. Correia Fernandes

A mitologia é o mundo do espírito com a prevalência do humano;
como o religioso é o mundo do espírito com a prevalência do divino.

Almada-Negreiros, Prometeu (1935)

 

Fomos alertados pela página de abertura do Google de 2 de junho, que inseria uma imagem interpretativa da figura de José de Almada Negreiros (1893-1970). Verificadas as datas da sua vida, reconhece-se que faleceu em 15 de junho de 1970, aos 77 anos de idade, faz neste dia 52 anos.

Já fizemos várias referências jornalísticas neste local à personalidade e à obra de Almada Negreiros, certamente uma das mais notáveis e polifacetadas personalidades culturais do século XX em Portugal. Ao usarmos o termo “culturais”, tão repetido ultimamente para acontecimentos que vão desde o teatro de rua, da chamada “arte urbana”, até à mais sofisticada ópera, ao mais acabado romance, ao mais fundo tratado  ou ao mais complexo e espiritual concerto dos Requiem  de Verdi, de Mozart ou de Berlioz, queremos justamente lembrar a multiplicidade das expressões nas quais se evidenciou Almada Negreiros, e que vão desde a pintura, o teatro, a narrativa, em que se insere o romance Nome de guerra em estilo inovador para a época, proposto como retrato de uma sociedade lisboeta na transição entre o tradicionalismo e o modernismo.

Almada Negreiros, Sentença de Salomão, Palácio da Justiça de Aveiro

Três momentos podemos distinguir no percurso de Almada: 1) A sua intervenção nos anos mais moços, particularmente a colaboração com os criadores do Opheu, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Santa Rita Pintor; 2) a sua permanência em Madrid, ao longo de uns cinco anos, de 1927 a 1932, onde colaborou com o núcleo de Belas Artes da capital espanhola, com decoração de teatros madrilenos, em jornais e revistas literárias de Madrid, sob acolhimento que Gómez de la Serna e Giménez Caballero (diretor de La Gaceta Literaria), e onde chegou a contactar com Federico García Lorca; 3) o seu trabalho a partir de 1935, que conduziu a obras literárias como Nome de Guerra (editado em 1938) e sobretudo a sua atividade como artista plástico, os estudos sobre os painéis de S. Vicente, os magníficos painéis do átrio do segundo piso da Gare marítima de Alcântara, ou a tapeçaria “A sentença de Salomão” do Palácio da Justiça de Aveiro, ou os vitrais da igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa.  Creio ter sido Giménez Caballero que lhe chamou “ese grande desconocido fuera de Portugal”. Poderíamos reduzir o lamento à nossa própria dimensão: esse (ainda) grande desconhecido mesmo em Portugal.

Este dia do seu falecimento há 52 anos (16 de julho de 1970), é oportunidade para revisitar a seguinte reflexão já publicada nestas páginas.

O acessório e o essencial

O essencial gostava de o transmitir a seguir, embora certamente não consiga fazê-lo. Assenta nos seguintes três axiomas: Almada era crente. Almada não era cristão assumido. Almada manifesta uma visão do mundo decalcada sobre a da teologia cristã.

Em colóquio que lhe foi dedicado, abordaram-se, tanto os aspetos artísticos e poéticos, como algumas perspectivas filosóficas e teológicas afirmadas, explícita ou implicitamente, por pensadores e teólogos da tradição cristã.

Tento dar alguns exemplos. O primeiro é o do referido ensaio sobre Prometeu. Esta figura mítica é, evidentemente, o homólogo grego da interpretação bíblica do pecado original: o homem que se quer contrapor aos deuses. Prometeu quer roubar aos deuses o conhecimento. A “árvore” do paraíso era a árvore da ciência do bem e do mal. O pecado consistiu em que o homem quis ser como Deus: “sereis como deuses”, diz o tentador. Será assim o homem que se quer bastar a si próprio, tornar-se o deus de si mesmo e o deus de todas as coisas. Este continua a ser o pecado original de hoje, porque o homem Adão é o homem de ontem e o homem de hoje, a não ser que se torne Homem-novo. Quantos homens de hoje se tornaram verdadeiramente “homens-novos”, como dizia S. Paulo, instaurados na justiça e santidade verdadeiras?

Escreve Almada: “É esta a palavra que encerra toda a tragédia de Prometeu: o conhecimento”. Por isso, conclui ele, Prometeu é “a personagem máxima do humano, é ao mesmo tempo o herói e a vítima do conhecimento”. Quer dizer: Prometeu é a dimensão humana do Homem, é o homem que se basta (mas não consegue bastar-se), é o homem não-salvo, e que por isso necessita de Salvação. Estamos no âmago do sentido cristão da necessidade da Redenção.

Na visão de Almada, ele é o enigma da Europa. A Europa vive da contradição dos seus opostos: um é a ânsia e a procura do conhecimento; outro é a fé, entendida como a constante procura do Universal. Só há duas maneiras de atingir o universal: o conhecimento e a fé. Uma humanidade de génios e uma humanidade de santos, Prometeu e Cristo. E sintetiza: “Prometeu é o universal pelo conhecimento; Jesus Cristo é o universal pela fé”.

Mas o mais inesperado (será?) e o mais estonteante para quem quer reduzir o pensamento a ideias fixas e feitas é que Almada encontra o fulcro, o centro, a equidistância (que sempre procurou no seu desenho e pintura) de toda a questão que ele próprio levantara, e que é a questão não apenas do sentido de toda a cultura da Europa, mas de toda a humanidade: Jesus Cristo não contraria a descoberta de Prometeu (o valor do humano), apenas completa juntando-lhe o divino, reunidos no mesmo edifício, formando a mesma unidade como nas catedrais medievais.

Atente-se cuidadosamente nesta frase de Almada (nascida apenas da preocupação de analisar o enigma da Europa, portanto sem nenhuma preocupação teológica: “Cristo reconcilia o Humano com o Divino e a seguir a humanidade acertará o material com o espiritual e acabará por concertar tudo em todos”.

Interessante mescla entre a visão paulina (Cristo será tudo em todos) e uma visão humanista e universalista, no entanto incluível na visão da teologia cristã mais humanística, segundo a qual é pelo próprio homem, e portanto pela humanidade inteira, que Cristo realiza a sua acção salvadora. Será outra versão da ideia igualmente paulina mas universalizada do Corpo Místico de Cristo: é na humanidade que Cristo se realiza; ela é a continuidade da sua presença no mundo. É portanto pela ação do homem que se realiza a obra de Deus.

Outro aspeto interessante das ideias de Almada é a sua constante personalista: coloca a centralidade da pessoa humana como fundamento de todo o sentido vital do homem. E, curiosamente, também bebe no texto evangélico o fundamento das suas convicções. Diz, por exemplo, comentando o preceito “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”: Cristo conhece perfeitamente a dignidade humana, sabe perfeitamente que o único que serve de verdade a personalidade humana é a própria liberdade da acção pessoal. Mais adiante, esta inquietação quase obsessiva pela pessoa humana exprime-se da seguinte forma: A Pessoa humana é um negócio particular de cada pessoa humana. É um complexo de material e de espiritual exactamente como a própria vida. E, numa preocupação de definir o relacionamento do indivíduo e da colectividade: Cada pessoa humana, capacitada da sua inteira unidade própria e da inteira unidade própria da colectividade não pode deixar de tender a pôr-se, a si e à colectividade, nos seus respectivos e determinados campos de acção.

De tudo isto, que importa concluir? Que o homem pensador que foi Almada, não assumidamente cristão, percorre os humanos caminhos da reflexão, da meditação e da filosofia paralelamente próxima, quase convergente, com os caminhos de uma interpretação teológico-cristã da existência humana. E certamente com a mesma sinceridade de coração, na busca, como ele diz, do Universal, do Absoluto.

A fé não é alheia de nada que seja humano.  Tudo o que é humano não é alheio à fé.