
Por M. Correia Fernandes
Este mês de junho traz-nos sempre algo de novo: não são apenas os dias longos, nem as festas dos chamados “santos populares”, ou neste ano os dramas da guerra, insensata e desumana, para a qual ingenuamente se reclamam “corredores humanitários”.
Traz-nos também a memória repetida de duas das mais notáveis figuras da nossa história, do pensamento, da poesia, da escrita, do conhecimento e da sabedoria.
Em 10 de junho de 1580 (segundo a opinião mais seguida, apesar de algumas divergências) falecia Luís Vaz da Camões (1525-1580), por volta dos 55 anos de idade. No dia 13 de junho de 1988 nascia Fernando António Nogueira Pessoa, António por causa do santo do dia, falecido em Pádua, no norte de Itália, em 13 de junho de 1231, aos 35 anos de idade. Fernando Pessoa viria a falecer em 30 de novembro de 1935 em Lisboa, aos 47 anos de idade.
Que têm estas personalidades de comum? O dinamismo espiritual e evangélico de Santo António, que foi de Lisboa, de Coimbra a Marrocos e até a Itália pelo ideal franciscano; ou a dinâmica lírica e aventureira de Luiz Vaz, que demandou as partes da Índia e da Ásia, em luta e aventura; ou a visão pluralista de Fernando António, que de África do Sul encalhou definitivamente em Lisboa, mesmo que por outros heterónimos tenha ido à Inglaterra ou ao Brasil?
Podíamos correr ao encontro pressuroso dos ensinamentos de Santo António em seus sermões, que são escaparate de pensamento e de espiritualidade. E mesmo de ensinamentos vitais práticos, como aquele que diz que “A paciência é o baluarte da alma, ela a fortifica e defende de toda perturbação”, ou a proposta “Quem não pode fazer grandes coisas, faça ao menos o que estiver na medida de suas forças; certamente não ficará sem recompensa”. Os seus inspirados escritos sobre o Amor de Deus levaram a que lhe seja atribuída a proteção do amor humano, o que coisa boa é, porque quem bem realiza o amor humano está a partihar o amor de Deus.
Mas os nosos dois escritores maiores partilham também projetos e dramas humanos. A criação poética é irmã da criação do pensamento. Por isso sempre sentimos algum desconforto quando nos falam do “poeta Pessoa” ou do “poeta Camões”, porque esses termos são limitativos da plenitude sua identidade, como podemos ver também em outras figuras, como Antero de Quental, ou Jorge de Sena, ou Vitorino Nemésio e tantos outros dos nossos.
Recordar a figura de Camões constitui uma experiência marcante, por causa daquela realidade humana que é a incapacidade de detectar a presença da sabedoria nas limitações da pobreza humana. Basta ler penosamente o que escreveu Diogo do Couto que dizendo que Camões foi sepultado no cemitério de Santa Ana “da banda de fora chãmente” e lembrar que o seu túmulo na igreja dos Jerónimos nem deve conter as suas ossadas, que, como refere Agustina de Bessa-Luís, nem sequer são já restos mortais porque jánem sequer existem (Agustina, “Um cão que sonha”).
Quando fez a leitura do seu poema a D. Sebastião (que certamente dele não entendeu o essencial), disse-lhe que era “de vós não conhecido nem sonhado”, e lhe lembra que “Nem me falta na vida honesto estudo, / Com longa experiência misturado, /Nem engenho, que aqui vereis presente, /Cousas que juntas se acham raramente”.
Uma das informações pouco valorizadas sobre Luís de Camões é aquela em que o seu biógrafo afirma que, a quando da passagem por Moçambique em que “vivia de amigos”, escrevia muito em um Livro a que chamava Parnaso de Luís de Camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia, e que se perdeu, até afirma que lhe furtaram, e que terá constituído um repertório do seu pensamento e do seu saber, tão extenso e profundo como revela nas mais sentenciosas palavras dos Lusíadas e da lírica.
Sobre as expressões poéticas de Fernando Pessoa, qualquer estudante com elas contactou, pelo menos de uma forma superficial, porque os textos escolhidos para os manuais escolares, em virtude da insistência na poesia, nem sempre são os mais significativos do pensamento. Há que completá-los com os escritos reveladores desse pensamento, sendo essencial o “Livro do Desassossego”, no qual expõe meditações como esta:
“Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber por quê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus… Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade…Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais”.
Não sei porquê, dei comigo a revisitar um livro de Bernardo Xavier Coutinho, publicado em 1975, em que analisa a palavra “Lusíadas” e em que interpreta os retratos de Camões, bem como um reencontro com “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho. São formas de recordar as figuras deste junho para além dos desfiles e das marchas. Dele retenhamos a seguinte afirmação: “A arte foi a grande finalidade dos seus dias. É certo que a sua «terrível e religiosa missão» de artista o obrigou a renunciar a tudo oque podia ainda ser objeto da sua cobiça”.
A Palavra em queda
Assim como fui confrontado em tarde inesperadamente chuvosa e sem guarda-chuva, com a apresentação de um pequeno livro de poemas com o significativo título de Palavra em queda. De facto toda a poesia é “Palavra em queda”, venha ela de Camões, de Pessoa ou do jovem autor deste pequeno volume, Pedro Lopes Adão, apresentado na Faculdade de Letras do Porto. De facto um posfácio de Francisco Topa salienta que estas palavras em queda são também palavras em alta.
Assinala bem o autor:
Eu quero essa palavra. Palavra
que me fugiu mas estou vendo;
palavra redentora,
divina e salvadora, palavra
em género humano
reveladora.
Com efeito, a descoberta da poesia, “palavra grave e de sentimento”, é sempre motivadora de novas presenças e de novos tempos de sentimento e de pensamento.
Como fizeram os poetas antigos e como vão fazendo os novos, como neste sugestivo livro da edição “Glaciar” (Porto), em que o guardador de rebanhos é substituído pelo guardador de imagens: “As imagens são rebeldes e só ficam as que querem”.
Que nos fiquem sempre as imagens da grandeza humana.