Liturgia e Devoções

Foto: João Lopes Cardoso

Por Secretariado Diocesano da Liturgia

Estamos no mês do Coração de Jesus, assinalado com lugar de destaque no calendário devocional do Povo de Deus. Mas as «devoções» estão fora de moda – afirma-se. E, porventura com a exceção do mês de Maria – e poucas mais, a nível local ou na vivência de alguns movimentos –, constata-se que o fenómeno devocional deixou de ser valorizado na prática pastoral.

Para este desfavor e desmobilização, argumenta-se com o II Concílio do Vaticano e a reforma litúrgica. Não se tem em conta que o movimento litúrgico, consagrado pelo último Concílio, combateu, é certo, os excessos e desvios das devoções promovidas e praticadas quase como alternativa e substituto da Liturgia da Igreja. Mas nunca se opôs a elas enquanto tais. Na verdade, a Liturgia tem um débito histórico em relação à vida devocional porque, quando se afastou do povo e só com muita dificuldade proporcionava alimento digerível à piedade dos fiéis, as devoções, na sua maior parte nascidas na órbita da Liturgia, supriram as suas deficiências e contribuíram decisivamente para assegurar a fidelidade do povo de Deus  à vida litúrgica e sacramental da Igreja.

Se relermos a Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium (= SC) confirmaremos que nela se afirma com clareza meridiana que «a vida espiritual não se limita apenas à participação na sagrada Liturgia» (SC 12). E no mesmo contexto se afirma que «são muito de recomendar os exercícios piedosos do povo cristão» (SC 13). Já antes se tinha estabele­cido que «a sagrada Liturgia não esgota toda a ação da Igreja» (SC 9) e se tinha encontrado a formulação fecunda dentro da qual enquadrar não só a problemática das «devoções» mas também a articulação correta da Liturgia com as demais atividades em que se concretiza e desdobra a missão eclesial no seu todo: «a Liturgia é o cume para o qual se encaminha a ação da Igreja e, simultaneamente, a fonte de onde dimana toda a sua força» (SC 10).

«Cume e fonte»: assim se deve equacionar o relacionamento simbiótico entre a vida litúrgica e a prática dos atos de piedade do povo cristãos. Ora só há cume se houver encosta. Se negamos a encosta, baixamos o nível do cume e ficamos com um vale plano («chato») de onde dificilmente pode jorrar e correr uma fonte.  Por isso, a negligência da vida devocional – com destaque para os exercícios de piedade aprovados pela legítima autoridade da Igreja, Papa e Bispos (SC 13) – tem como consequência, talvez imprevista mas logicamente inevitável, a decadência da liturgia.

Os Padres conciliares tiveram o cuidado de salvaguardar a necessidade de que estes atos de piedade do povo de Deus – que se inscrevem no âmbito da religiosidade popular e não só –estejam em conformidade com as leis e normas da Igreja (SC 13). E deixaram-nos um «guião» para a sua reforma ou renovação que vale a pena reler com atenção: «importa ordenar essas práticas tendo em conta os tempos litúrgicos, de modo que se harmonizem com a sagrada Liturgia, de certo modo derivem dela, e a ela, que por sua natureza é muito superior, conduzam o povo» (SC 13). Eis uma concretização da formulação inspiradora: «cume e fonte»!

À luz destes princípios, a Congregação para o Culto Divino preparou um valioso «Diretório sobre a piedade popular e Liturgia – Princípios e orientações», que, passadas duas décadas (14 de dezembro de 2001) continua válido e estimulante. Vale a pena reler este documento tanto pela clarividência da reflexão doutrinal que encerra como pela pertinência de muitas das suas propostas de renovação pastoral. É urgente dar sequência à reforma litúrgica com uma renovação coerente e consistente da piedade popular.