
Por padre Fernando Rosas
Diz a sabedoria Tuaregue que Deus criou o deserto para que os homens pudessem encontrar a sua alma. Muitos já fizeram a experiência que confirma esta máxima deste povo Berbere do deserto.
Foi entre os Tuaregues que Charles de Foucauld morreu com uma bala amedrontada no dia 1 de Dezembro de 1916, junto do ermitério que tinha edificado com as suas próprias mãos. Uma vida distante de todas as coisas, o mais distante possível, perdida no deserto, para se tornar próxima de todos, que se tornou um fogo que lentamente tomou o coração de muitos e que agora chega ao culto de todos, por vontade do Papa Francisco.
A encíclica Fratelli Tutti vê neste “Irmão do deserto” «uma pessoa de profunda fé, que, a partir da sua experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos» através de «uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano» (n. 286 e 287). Esse seu exemplo tornou-se um modelo de referência no universo da santidade cristã do nosso tempo.
Nascido de uma família nobre e abastada, a 15 de setembro de 1858, cedo revelou um espírito irrequieto e inquieto. Teve uma educação religiosa e burguesa, que veio a rejeitar na adolescência, para experimentar os desregramentos do mundo. Depois de ingressar no serviço militar aos 18 anos, é enviado para Argélia, onde se revelou um oficial muito apreciado pelos chefes e soldados. Deixa o exército para participar numa viagem de exploração em Marrocos, o que lhe proporcionou contactos com a pobreza e o desprezo social de seus habitantes. Ficava admirado com o caráter sagrado da hospitalidade e com a oração dos muçulmanos, cuja extraordinária religiosidade abriu caminho para a sua conversão.
Depois de muito ter peregrinado pela vida e pelo mundo, começa a operar-se uma importante mudança dentro de si. A fé de uma tia e de sua prima Maria de Bondy lança-lhe questões, que acicatam a sua inquieta e ardente procura. Entra nas igrejas de Paris para repetir esta oração: «Meu Deus, se existes, faz com que eu te conheça». Vai à igreja de Santo Agostinho para partilhar suas dúvidas com o padre Huvelin, mas este sacerdote, ao aperceber-se que as suas buscas se situam a um nível muito mais profundo que o doutrinário, convida-o a confessar-se e a comungar. Tal como aconteceu a Paulo a caminho de Damasco, também a ele «uma luz vinda do céu envolveu-o com a sua claridade» (At 9,3).
A partir desse momento, empreendeu um singular percurso espiritual, que o levaria a entrar na Trapa e a viver como criado na horta de um convento de Clarissas na Terra Santa, antes de ir para o deserto norte-africano de Beni Abbés e de Tamanrasset, à procura de uma vida humilde, pobre e escondida.
Entrando profundamente no coração, na cultura e na história dos habitantes de uma pequena tribo nómada de tuaregues, passou a ter uma prática quotidiana de oração e de adoração, numa total proximidade com os mais simples e pobres, sem fazer distinção de raça ou religião e sem qualquer desígnio de proselitismo. Numa carta a sua prima Bondy, explicava por que queria viver o amor universal em cada palpitação da sua vida oculta e frágil: “Quero habituar todos os habitantes, cristãos, muçulmanos, judeus e não crentes, a olharem para mim como seu irmão, o irmão universal (…) Começam a chamar a minha casa de ‘a fraternidade’ e isso me é caro”. De facto, tinha a sua casa sempre aberta para acolher quem lhe batia à porta, desde os tuaregues, rigidamente muçulmanos, até aos soldados franceses e turistas que visitavam o deserto.
Ao referir o Irmão Carlos como alguém que «quis ser pequeno para ser irmão de todos, a começar pelos excluídos e descartados», Edson Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira, no Brasil, considera que ‘a busca do último lugar’, assim testemunhada de forma existencial e geográfica, «apresenta-se hoje como um antídoto à autorreferencialidade da Igreja que se expressa no clericalismo», que sempre ameaça a Igreja.
Carlos de Foucauld inaugurou um modelo de vida contemplativa no coração do mundo. Esta modalidade, assente numa mística de imitação dos trinta anos de Jesus em Nazaré, continua a inspirar as várias fraternidades, que entre nós vivem a vocação, religiosa ou laical, através de uma vida simples e comum, nunca afastada da condição quotidiana dos mais pobres.
Talvez possamos resumir a espiritualidade de Charles de Foucauld a três palavras: pobreza (deserto), adoração (Eucaristia – oração); acolhimento (universalidade).
Hoje são muitos que procuram seguir a sua espiritualidade e o seu estilo de vida: vivem ou sobrevivem à custa do seu trabalho, graças aos pequenos salários auferidos em profissões mais ou menos indiferenciadas; habitam nos bairros mais pobres, partilhando as condições precárias dos demais residentes; compartilham o seu estilo de vida, suas expectativas e sofrimentos, sem olharem às suas crenças ou estatutos familiares; assumem compromissos com o mundo, a partir de uma vida simples e próxima com os mais desfavorecidos; reservam tempos fortes à oração e adoração, onde buscam forças para se dedicarem cada vez mais a Deus e aos irmãos. Como tudo isto faz falta à Igreja, hoje!
Em Portugal são alguns milhares que conhecem e se inspiram em Charles de Foucauld. Especialmente as Irmãzinhas de Jesus, em Fátima e em bairros de Lisboa, como o do Prior Velho, ou os Irmãozinhos de Jesus, em Setúbal, a Fraternidade Charles de Foucaudl e a Fraternidade Secular, que congrega muitos, de vários pontos do país, no mesmo testemunho de fraternidade universal.
Agora a Vida e a santidade do Irmão Carlos vai ser uma proposta para toda a Igreja. Alegramo-nos muito com isso e com a certeza, que continua a ser um estímulo e uma graça para a igreja que queremos construir e que, acreditamos, se fará presente aos homens e mulheres de hoje, procurando, como ele, encontrar Deus numa quotidiana vida oculta e gritar o Evangelho com a vida.