A propósito da Pastoral da Cultura

Por M. Correia Fernandes

Quantos cristãos da Igreja em Portugal saberão que entre os componentes da sua estrutura de missão existe um Departamento designado Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, integrado na Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, cujo Presidente atual é o Bispo de Viana do Castelo, D. João Lavrador, sendo Diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura o catedrático da Universidade de Coimbra José Carlos Seabra Pereira?

E quantos saberão que aquele órgão publica com regularidade informações e reflexões sobre atividades, iniciativas e movimentos que fazem da intervenção  cultural o seu campo de formação, reflexão e ação? E que esse Secretariado publica com regularidade mensagens, infirmações e textos analíticos sobre as mais diversas dimensões do mundo da cultura em Portugal e no mundo. Estes textos vêm assinados por Rui Jorge Martins, que está sempre em cima dos acontecimentos culturais mais relevantes.

Vamos então apresentar alguns dados sobre esse importante sector da vida eclesial do país.

Para entendermos a amplitude do seu âmbito de atenção e de intervenção, atendamos a alguns dos temas ultimamente tratados: “Vaticano abre concurso para distinguir artistas, arquitetos e investigadores”;  “Conselho Pontifício da Cultura debate o «humanismo necessário»”; “Conselho Pontifício da Cultura faz 39 anos e presidente recebe a mais prestigiada condecoração de Itália” (o Presidente é o Cardeal Gianfranco Ravasi e a condecoração que lhe foi atribuída é a Grande Cruz da Ordem da Estrela de Itália); “Queria uma metafísica que falasse como um ser amado: o sentido do tempo que passa segundo Lídia Jorge”; “A Universidade Católica aproxima cristãos e judeus com nova cátedra centrada na Bíblia”; ou a Arte e a Igreja em Portugal, ou a atenção aos movimentos no campo do cinema ou das artes. Ou todos os campos da cultura humana de raiz universalizante.

 

Uma jornada de Cultura

O acontecimento relevante agora anunciado, organizado pelo Secretariado Nacional, é a realização em 28 de maio de 2022 da Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, que irá debater a precariedade na espiritualidade, arte, economia, migrações. Contará com uma reflexão do cardeal José Tolentino Mendonça, refletindo sobre “A condição precária”, através de uma intervenção gravada previamente.

A jornada está organizada em dois painéis presenciais, com a participação de personalidades do mundo da economia, migrações, arte e cultura, que entre eles contarão com o momento denominado “Poética do caminho”.

Como assinala o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, José Carlos Seabra Pereira, «Um dos estigmas mais fundos e lacerantes» das múltiplas crises que atravessam o mundo reside na situação de precariedade, tantas vezes redundando em experiência limite de desemprego e de abandono, até à dificuldade extrema de subsistência física e de resistência anímica».

Em contraste, o diretor assinala que «nem as diversas áreas da vida cultural ficaram imunes a tal precariedade, nem a vida cristã de comunidade se alheou das suas causas e das suas exigências, sentindo-se profundamente interpelada e procurando reagir coerentemente».

Com efeito, a atenção e o interesse pelos mais diversos movimentos culturais, o seu relacionamento com os princípios e as dinâmicas da sociedade e o confronto necessário com os ideais nascidos da Palavra e do sentido cristão da vida das pessoas e da sociedade, sempre foram ao longo dos tempos uma dimensão essencial  da pastoral da Igreja.

Os sentidos e caminhos da cultura

Na linguagem hodierna, a cultura alcançou um âmbito muito amplo e sistematicamente alargado. Não se fica apenas pela literatura, pela história, pela ciência, pelo direito, pelas artes, mas tudo isso passa para o mundo do espetáculo e das redes mediáticas, e tanto se entende como cultura as reflexões filosóficas das escolas, como as crónicas jornalísticas de louvores ou diatribes, como os festivais da canção ou espetáculos de rua promovidos pelas mais diversas organizações. Mesmo no contexto dos sempre solicitados apoios governamentais para o universo cultural, as pretensões e as razões justificativas para os pedidos preenchem um amplo espectro de pretensões.

Não me parece porém por exemplo que as atividades religiosas, as suas mensagens de valorização pessoal e social, os seus apelos de convivência e de paz tenham sido considerados como atividades do mundo da cultura. Talvez valesse a pena que os ministérios pensassem nisso.

As múltiplas definições de cultura coincidem no seu sentido mas amplo: “A cultura é compreendida como os comportamentos, tradições e conhecimentos de um determinado grupo social, incluindo a língua, as comidas típicas, as religiões, música local, artes, vestimenta, entre inúmeros outros aspectos”.  Mais genérica e abrangente pode ser uma definição como esta: “A cultura é parte do que somos, nela está o que regula a nossa convivência e nossa comunicação em sociedade”.

Mais abrangente é a reflexão de André Malraux, o celebrado autor de La Condition Humaine: La culture est l’héritage de la noblesse du monde”. “La définition de l’oeuvre d’art c’est ce qui a échappé à la mort ». (A cultura é a herança da nobreza do mundo. A definição de obra de arte é aquilo que escapou à morte”).

A maior tarefa  da cultura será a de relacionar e reinventar em permanência a dimensão racional e a dimensão emotiva da Homem e por isso a sua nobreza. Podíamos associar tantas outras dimensões: o presente e o histórico, as imaginações e as vivências, os impulsos fisiológicos e as dinâmicas espirituais, o materialismo e a espiritualidade, as força do universo e da natureza  e as dimensões da Fé. O essencial não é escapar, mas permanecer para além da morte.

Podia registar-se mais outra frase de Malraux: “A existência do Amor, da Arte e do Heroísmo não é menos misteriosa que as forças do mal”.

É também observação pertinente: “A cultura é popular por aqueles que a acolhem, não pelas características da sua natureza”, e por isso desejaria que “a cultura será popular ou não existirá”.

Múltiplos são os caminhos da cultura. E nela deve haver sempre “caminhos não andados”. Este encontro anunciado pode desbravar mais alguns desses caminhos.