O Cinema visto pela Teologia (22): “O poder do cão”

Uma leitura do filme “O Poder do Cão” *​​

Por Alexandre Freire Duarte

Quando Jane Campion, diretora da aclamada obra “O Piano”, voltou a dirigir um filme, quase 15 anos depois do seu último esforço, as espectativas eram compreensíveis e o ter vencido o Óscar para melhor realizador(a) não espantou minimamente. Não espantou, não porque “O Poder do Cão” seja uma “obra maior” – não o é, de todo –, mas sobretudo porque vivemos no seio de uma, fraturada e fraturante, conjetura sócio-cultural que ela escalpeliza de modo oblíquo. Isto é uma pena, pois haveria outros caminhos que, a terem sido explorados neste drama psicológico, dariam à história retratada um poder ampliado.

Desde logo, a ambiência cinematográfica é uma cacofonia. De um lado, o elenco foi muito bem escolhido; as personagens são fascinantes – com o desempenho de Benedict Cumberbatch a ser arrepiante (em diversos sentidos) –; e a fotografia e a música embalam-nos em sintonia com o ritmo lento, mas carregado de violência prestes a explodir, do filme. Do outro lado, parece que estamos mais dentro da mente (flagelada, labiríntica e obscura) da diretora, do que nos cenários geográficos e faciais vistos, os quais, assim, se dissolvem em poças amorfas sem energia e/ou significado.

Do ponto de vista teológico, pode referir-se que estamos ante um amoral e anacrónico conto (e título) inspirado no Sal. 22,19, mas em que, se parecendo querer justificar tudo, acaba-se a destruir a realidade e a camuflar a (ir)responsabilidade. Daqui ao negar-se a dimensão espiritual do ser humano (neste filme quase limitado a uma soma de determinismos, mormente sexuais, maquinais) acaba por ser um pequeno, mas evidente, passo.

Sim: todos somos pessoas falíveis que precisamos de saber viver, muitas vezes, na solidão e no meio de dificuldades (e até acometimentos de onde eles menos seriam expectáveis) e expectativas que (nos) são destruídas. E destruídas, pelo humilhante “cão”, quer da nossa inveja e arbitrariedade, quer dos “amigos” que (cremos que) nos mordem apenas porque “não ‘vamos’ na sua dança”.

Se assim acontecer, quiçá nos tornemos, nós mesmos, em “cães” para os demais, deambulando através dos nossos ambientes emocionais interiores que: bloqueiam palavras; restringem os contactos olhos-nos-olhos; impedem as palavras escritas no chão da verdade; e obrigam os demais a viver entre a “espada e a parede” das nossas personalidades espirituais assim retorcidas.

Mas isso (que até pode comportar vergonha, apreensão e culpabilidade tóxicas), nunca é o tudo da nossa vida aos olhos do Deus-Amor. Mesmo nessa montanha de dores e irresponsabilidades, sabemos que podemos viver co(m)-cruxificados com Aquele cujo sepultamento não aniquilou, antes potenciou, a Sua glorificação também sanante de tudo nas nossas vidas. Quase nada desta máxima realidade se vê neste filme, em que a esperança (por exemplo, da mudança para melhor e até da vitória do amor sobre os “cães” que mordem desde os nossos corações) e a resolução dos problemas pela lógica da verdade e da reconciliação parece ser desconhecida.

(* Nova Zelândia, USA, 2021; dirigido por Jane Campion; com Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee)