Uma nova versão da Paixão segundo S. João, de P. Ferreira dos Santos

Uma composição única no panorama musical português

Por M. Correia Fernandes

Desde há décadas que o Coro da Sé Catedral do Porto apresenta na noite de Sexta feira Santa, na Igreja da Lapa (Porto) um obra coral-sinfónica que lembra o mistério desse dia, a Paixão e Morte de Jesus.

Este ano apresentou a segunda versão da “Paixão segundo S. João”, do P. Ferreira dos Santos. Trata-se de uma versão revista e acrescentada, ordenada sob o modelo das Paixões da História da Música, segundo a nova concepção com que o autor a quis agora aperfeiçoar. Os intérpretes desta versão foram o tenor Vítor de Sousa (Evangelista), José Corvelo (Jesus), Miguel Simões (Pilatos) e Paulo Macedo, como narrador, com o Coro da Sé Catedral do Porto, a orquestra “Sine Nomine”, com Filipe Veríssimo ao órgão e a direção de Tiago Ferreira, maestro do Coro.

Origem e renovação da composição

Segundo já divulgamos, a parte coral da primeira audição desta Paixão foi integralmente escrita na Alemanha em 2008, conforme o autor confidenciou à Voz Portucalense (edição de 5 de março de 2008), e de que recordamos  algumas das suas declarações de então:

A parte coral foi toda escrita na Alemanha, por influência do ambiente e da inspiração de tantos autores daquele país que escreveram Paixões (Bach, Schutz…), interiorizando as leituras e reflexões teológicas. Procurei encontrar melodias para vestir a narrativa, as palavras, os diálogos e sobretudo as respostas de Cristo. É uma tarefa tremenda! Lembrei-me muitas vezes do que conta Ana Magalena Bach, que um dia foi encontrar o marido Johann Sebastian, de joelhos perante uma partitura que compunha. Não o perturbou. Verificou depois que tinha abado de comporá melodia para a frase “Tudo está consumado”, precisamente da Paixão de S. João (1723).

[Lembramos  que,  nesta Paixão, Bach acompanha as palavras de Cristo Es ist vollbracht!, que caem em silêncio, com um comentário meditativo do contralto, acompanhado por uma melodia densa do violoncelo comentada por acordes do alaude, repetindo a mensagem Es ist vollbracht!, “Tudo está consumado”].

Continua o autor:

Compus os coros sem piano nem qualquer instrumento, apenas seguindo a inspiração das palavras do texto bíblico. Uma espécie de música interior para a expressão do sentimento.

A parte orquestral foi já composta em Portugal. Procurei traduzir nela também as emoções, sublinhando a expressividade da parte narrativa e coral, sobretudo desta, da interpretação coral. Foram, pode dizer-se, as circunstâncias que impuseram este processo. As palavras inspiraram a música, e a música coral inspirou a orquestra.

E o estilo? Clássico, moderno, vanguardista? Parece que algumas das suas obras percorrem caminhos de uma estética musical segundo cânones muito modernos…

Não. Não é do tipo “contemporâneo” ou experimentalista. Podia dizer que segue uma linha tradicional, procurando explorar as suas propostas mais extremas ou as suas sugestões mais atuais. Tirando da tradição musical o muito que ela pode dar. Quis realizar uma música de gosto mais universal, menos para elites. Tenho de facto obras de concepção mais avançada, esta é certamente mais ao gosto clássico.

Num diálogo de 2020, o autor lembra que todos os corais que comentam os acontecimentos são retirados da Liturgia das Horas, constituindo sucessivas reflexões e interiorizações ao desenrolar dos acontecimentos (à maneira das Paixões de Bach). Lembra também que a obra está dividida em duas partes, sendo a primeira do julgamento e condenação de Jesus; e a segunda da sua crucifixão e morte. O coro final é conotado com Sexta Feira Santa, traduzindo o tempo vivido da Paixão, um grito de esperança salvífica que subjaz a toda a Paixão. Também salienta o autor que a introdução à narrativa é retirada do evangelho de S. Mateus (introduzindo o “Pai, se este cálice”, no coro inicial), seguindo depois a narrativa joanina.

Uma versão atualizada

Nesta versão atualizada, o autor introduziu uma diferenciação: para além da apresentação narrativa de forma oral, através da declamação, também a apresentação da história joânica proposta pelo tenor, ao estilo das Paixões de Bach. A novidade é ainda a introdução pelo narrador (tenor) de uma passagem do livro de Isaías, cap. 42: “Eis o meu servo que eu amparo… anunciará a verdadeira justiça… não desfalecerá…”, seguido do hino “Entregou-se ao sacrifício /o Cordeiro Redentor”, com que termina a primeira parte.

A segunda parte inicia-se por um intermezzo orquestral, que procura interpretar a expressão da dor e da Paixão, através de dissonâncias orquestrais, seguido de um coro que afirma: “Supremo Rei, não de ouro coroado, mas de espinhos que escolhestes”, no qual de insere uma bela e elaborada fuga, concluída orquestralmente, que introduz a narrativa da subida do Calvário, em que se inscreve o hino “Ó Cruz fiel”.

A melodia do hino “Ó Cruz fiel”, na sua inicial e aparente simplicidade, possui uma construção musicalmente complexa e de grande expressividade…  Lembra-se a passagem, de um lirismo arrebatador, que se segue a um intervenção orquestral violenta que desemboca numa forma lírica comentando  a força e expressividade do poema:

Verga os ramos, nobre lenho

Dá repouso ao corpo cansado

Suaviza a dureza

do teu natural rigor

E prepara nos teus braços 

um leito mais brando ao grande Rei.

Uma espécie de ressonância do Stabat Mater apresentado pelo coro feminino medita a conclusão “soltar o alento final”, a que se segue a meditação “Supremo Rei não de ouro coroado”, a que o evangelista contrapõe a prece “Salvai Senhor o vosso povo… sem vós não somos homens livres mas escravos” . Retoma a narrativa, que introduz o “Tudo está consumado”, em melodia densa, dramática, proposta pelo baixo, e repetida, recordando a palavra final de Jesus.

Depois da narrativa final da descida ao túmulo, o Coro canta “Uma semente desce à terra… traz ao mundo o esplendor… nova terra e novos céus”. Os salmos, com hinos do tempo da Paixão introduzidos na narrativa, procuram traduzir o sentido da redenção pela força do espirito e que antecedem as palavras do poema do autor: “O novo Adão recria o Cosmos”.

Entre os textos que comentam os acontecimentos, sobressaem as três composições do autor retiradas da Liturgia da Semana Santa: “Se o grão de trigo lançado à terra”, “Pai, se esta cálice não pode passar sem que eu o beba” e o hino “Ó Cruz fiel, árvore entre todas a mais nobre”.

Lembra que o texto do coro final foi escrito pelo próprio autor da música, reunindo imagens e simbologia bíblicas, apontando para a esperança da ressurreição, traduzida nestes termos:

Uma semente desce à terra

Da terra brota uma flor;

Jardins floridos e frondosos

Trazem ao mundo o esplendor.

O novo Adão recria o Cosmos

Faz nova a terra, novos os céus.

O estilo composicional do autor, que valoriza o contraste entre a expressão orquestral e a expressão coral, fazendo ressaltar o dramatismo trágico dos acontecimentos (como o coro “à morte! Crucifica-o”), contrasta o vigoroso com o intimista. A interpretação do conjunto evidenciou um esforço de aperfeiçoamento e a direção mostrou uma clara segurança que valorizou a sentido e a dinâmica da obra. Importa lembrar que esta Paixão constitui, tal como as anteriores e as de outros autores, uma forma privilegiada de meditação e de oração, e esta não é a menor das suas dimensões.

Haveria que acrescentar que esta é uma obra única no panorama musical em Portugal: pela temática, pela construção, pela extensão e por uma profundidade dramática e musical de grande elaboração formal e densidade espiritual.

Da última conversa com o autor registo: “Esta Paixão integralmente em língua portuguesa não é apenas única no panorama musical em Portugal, nem se encontra semelhante em língua espanhola, mesmo existindo muitas composições sobre quadros da Paixão. Considero que esta é a obra de maior dedicação pessoal das que fiz até hoje. É obra de vários anos, de vários acrescentos e aperfeiçoamentos formais”. É obra de uma vida de compositor.