“Ó tempo, suspende o teu voo”

Por João Alves Dias

Um mês é passado…Os jornais noticiaram. “Jorge Silva e Melo, nome fundamental das artes cénicas portuguesas do derradeiro meio século, faleceu no Hospital da Luz em Lisboa (JN, 17 de Março).

O Presidente da República prestou-lhe homenagem: “Não era apenas um dos encenadores mais emblemáticos, foi ator, dramaturgo, cineasta, professor, crítico e cronista, bem como um homem politicamente empenhado e um descobridor de talentos”. E o diretor do ‘Festival D’Avignon’, Tiago Rodrigues, acrescentou: “É como se tivesse perdido a nossa mais esplêndida biblioteca, como se tivesse ruído o nosso mais amplo teatro”.

Foi, porém, o vídeo da entrevista do ciclo “Deus – Conversas de Maria João Avillez”, realizada na Capela do Rato, em 21 de Outubro de 2015, que me fez descobrir a matriz do seu agir e me induziu esta crónica.

À pergunta se era “católico, apostólico, romano”, respondeu, com um sorriso e parafraseando uma fala que ouvira: – “Sou… tento ser…”

Filho de pais não religiosos – o pai era frontalmente anticlerical e antirreligioso – foi a rebeldia da sua irmã que o atraiu para a Igreja. Com ela, mais velha dez anos, entrou em contacto com a geração da JUC de Lisboa que marcou o início da década de sessenta, com realce para João Bénard da Costa e Pedro Tamen.

A pobreza e a coragem dos cristãos do filme “Quo Vadis” que viu na adolescência, fizeram-no despertar para uma religião bem diferente da que lhe era ensinado no colégio. Ao cristianismo feito de ‘pecado e culpa’ contrapunha-se a serenidade, feita de amor e perdão, com que os mártires enfrentavam o terror do circo romano. Um cristianismo de que, depois, se apaixonou com as leituras de S. Francisco de Assis e de Simon Weil. Um cristianismo que não revê no esplendor do barroco mas na singeleza da nave central do Mosteiro de Alcobaça. Um catolicismo minoritário de gente que ‘recusa a moda e o sucesso’ como experimentou em Londres, quando lá estudou, numa igreja enorme com meia dúzia de pessoas. “A ideia do amor é que me ganha”, confessa.

Foi, no entanto, a leitura bíblica da ‘Transfiguração’ onde a ‘humanidade e a divindade se cruzam’ numa narrativa contraditória e criativa que, como diz na entrevista, “marcou-me até hoje e talvez a minha profissão”. E explica:

No alto do monte Tabor, ”o homem vai revelar-se no seu esplendor divino.” “Deus é a excelência do humano.” Jesus “mostra o esplendor da sua humanidade maior”. E acrescenta: “e depois há aquela coisa que é o desígnio de todos os artistas, que é o São Pedro, o mais simpático de todos, que diz ‘vamos é fazer aqui três tendas e ficar aqui para sempre’. Portanto, Jesus terá rompido a matéria e o espaço, e São Pedro queria parar o tempo! E parar o tempo é a ambição de todos nós, nas artes. É o famoso verso do Lamartine: ‘Ó tempo, suspende o teu voo’. É ficarmos sem a deterioração, sem a morte, sem a rosa a cair. Queremos o momento em que está, o esplendor da divindade, da humanidade, o esplendor da flor.”

Em 22 de março, a título póstumo, foi-lhe atribuída, pelo Ministério da Cultura, a “Medalha de Mérito Cultural”. Também a título póstumo, lhe presto esta singela homenagem.