Caminhos da Semana Santa e Páscoa

Não há Semana Santa sem Páscoa porque a Páscoa é a raiz de toda a identidade cristã.

Por M. Correia Fernandes

Jesus, que se chamou “Filho do Homem”, assumiu a nossa condição humana. E assumiu-a, no dizer de J. Ratzinger, “tal como este, o homem, deveria ser na realidade” (1), isto é, sendo livre e sabendo usar a liberdade para a sua própria edificação.

A sua condição de “Filho do Homem” leva-o a assumir em plenitude a nossa  condição humana de criaturas nascidas de um projeto divino que parte, ao longo dos tempos, da vida e da história, da natureza para a graça, isto é, para a edificação de uma entidade pensante e espiritualizada,  que aproxima a condição humana da própria identidade de Deus.

Ao designar-se como Filho do Homem, Jesus assume para si mesmo essa condição, constituída por um lado a pela original, isto é “sendo de condição divina” e por outro pela sua nova condição: “tornou-se semelhante ao homem” (Filipenses). É aqui que se irá situar todo o drama da Paixão: da sua condição plena de humanidade, assume também a dos males desta  condição: sem ter conhecido o pecado tornou-se a maior vítima do pecado.

Uma das frases proféticas mais dramáticas da liturgia da Semana Santa é a proclamação do salmista “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, uma das reconhecidas sete palavras de Jesus na cruz, retiradas dos quatro evangelistas, que inspiraram tantos compositores em construções musicais cheias de dramatismo e de espiritualidade. (J. Haydn, Ch. Gounod, F. Liszt…).

Então este “Meu Deus porque me abandonaste?” constitui justamente a reafirmação  de toda a missão do “Filho do Homem”: desta condição faz parte, por culpa do homem, e das suas estruturas sociais, justamente o egoísmo, a incompreensão, a violência, a perseguição, a culpabilização do outro, a condenação. Jesus assume assim a plenitude das limitações da condição humana, incluindo a de ser vítima dela. Ele concentra em si o grito da toda a humanidade sofredora. O sofrimento da humanidade é o sofrimento que Jesus assumido naquele momento decisivo. É significativo que a própria natureza tenha estado presente (o eclipse do sol, o tremor de terra que rasga o véu do templo.

Por outro lado, encontramos (nessas palavras de Jesus na cruz) a outra dimensão das capacidades dessa condição humana, pelo assumir do apelo divino: O perdão (Pai perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem); a recompensa (Hoje estarás comigo no paraíso), a plenitude da condição humana (eis o teu filho), a dor e o desígnio (Tenho sede) e a plenitude (Tudo está consumado; nas tuas mãos entrego o meu espírito).

Em Cristo a história humana continua, está sempre presente. Quando o poder do mal chega ao seu mais alto ponto, ao seu clímax, é quando o coração humano se encontra realizado e se acerca ao coração de Deus: “Tudo está consumado”.

É este o anúncio da vinda da Páscoa: na consumação da condição humana é que se manifesta o futuro do reino e da salvação. Quando Jesus se faz homem realiza a identificação com a salvação de Deus até à sua concretização plena. “A identificação do Filho do Homem que julga o mundo com os fracos e atribulados pressupõe a identidade do juiz com o Jesus terreno e mostra a unidade íntima da cruz e da glória, da existência terrena no abatimento e a futura potestade de julgar o mundo. O Filho do Homem é um só: Jesus. Esta identidade indica-nos o caminho, e indica-nos o critério segundo o qual a nossa vida será julgada um dia” (2)

Nestes dias em que vivemos uma guerra, depois de (ou ainda durante) uma pandemia, sentimos o sofrimento da humanidade, quer pela natureza quer pela ação humana. Sentimos a violência por decisão dos poderes e dos seus esqquemas de força, sentimos a ânsia de destruição sem sentido, sentimos crucifixões e flagelações dos corpos vivos e do corpo das cidades. Sentimos sobretudo a flagelação do corpo da humanidade pela ação da ânsia do domínio e do poder por parte de alguns dos seus membros.

Qual será a Páscoa desta Paixão? Qual será o corpo ressuscitado deste corpo agredido e mutilado? Há que reedificar um mundo outro!

1)Jesus de Nazaré, cap.10

2)(ibidem).