Por M. Correia Fernandes
Fomos confrontados há dias com a morte de Jorge Silva Melo (1947-2022), aos 74 anos. Escritor, dramaturgo, ator, encenador de obras de teatro (atividade pela qual era mais conhecido), fundador e promotor de iniciativas teatrais em lisboa e vários outros locais do país. Interventor cultural, foi reconhecido em múltiplos meios de comunicação e recebeu reconhecimento oficial do Presidente da República e do Presidente da Assembleia da República, pela sua relevante ação cultural.
Na “grande imprensa” e comunicação social, no entanto, ficou por lembrar a sua condição assumida de cristão e católico, cuja formação recebeu desde pequeno e manteve ao longo da vida. Nos seus escritos frequentemente lembrava os ideais e episódios bíblicos como modelo ou contraponto dos comportamentos humanos. Numa entrevista publicada na revista Ler, afirma, quando confrontado pela jornalista Filipa Melo com o facto de ser católico: “Foi uma coisa firme. É uma coisa firme. O catolicismo formou-me numa série de princípios, dos quais não abdico.”
Este dado lembra que muitas figuras da intelectualidade e da arte estão marcadas, nos aspectos mais fundos do seu pensamento e do seu universo criador, pelos princípios e ideias do espírito cristão. Muitos dos que com ele conviveram e com quem conviveu são também figuras marcadas pelas dinâmicas do ser cristão e que deixaram a sua marca na sociedade portuguesa, assinalando desta forma o que ela manifesta de melhor.
Lembremos, por exemplo Nuno Teotónio Pereira e a sua igreja do Coração de Jesus em Lisboa e toda a sua ação em prol da arte e da valorização social. Por isso recebeu o Prémio Árvore da Vida Padre Manuel Antunes em 2012. Aliás este Prémio, que reconhece os valores cristãos nas obras de figura públicas, reúne nome emblemáticos da cultura portuguesa, tanto no domínio do pensamento, como da Arte, como do espectáculo, como da música, como da Filosofia e Teologia. Lembremos alguns dos mais recentes: Eduardo Lourenço, José Mattoso, Ruy de Carvalho, Luís Miguel Cintra, Walter Osswald, Lourdes Castro, Eurico Carrapatoso, Roberto Carneiro, João Manuel Duque.
Lembremos também como próximo de J. Silva Melo, a figura de João Bénard da Costa (1935-2009) e sua ação de um fundo humanismo na escrita e na divulgação cultural nos campos do mundo do cinema. Num livro de cerca de 1300 páginas que reúne os escritos sobre centenas de filmes, impressiona o olhar humano sobre as cenas e personagens dos filmes estudados de que é exemplo esta passagem de confronto entre filmes de Dreyer e Bergman: “Em Dreyer víamos a ressurreição da carne e aqui (em Bergman) vemos só a agonia no horto” (Escritos sobre cinema, p. 320).
Lembremos também o seu amigo e cofundador do Teatro da Cornucópia, Luís Miguel Contra (a quem a Conferência Episcopal Portuguesa conferiu também o prémio Árvore da Vida Padre Manuel Antunes em 2017, assinalando os fundos valores humanos da sua intervenção teatral, sobretudo a procura do encontro com as pessoas), para falarmos apenas da gente ligada ao espetáculo ou à comunicação social.
E não esqueçamos Manoel de Oliveira (1908-2015), também ele Prémio Árvore da Vida (2007), e o fundo humanismo da sua obra e mesmo a sua espiritualidade e atenção aos grandes dramas da condição humana e às grandes figuras da História, como o Padre António Vieira.
E a política?
O Papa Francisco (como aliás muitos dos seus antecessores) tem valorizado e dado novas forças ao sentido humanista da política, procurando a sua dignificação pessoal e social.
O espaço “7 Margens” divulgou recentemente uma texto assinado pelo Deputado do Bloco de Esquerda José Manuel Pureza (que nas últimas eleições não foi eleito), no qual analisa e explicita o facto de ser ao mesmo tempo católico e membro de um partido de Esquerda.
Nesse texto escreve: “Sou a minha circunstância. Cresci na fé, como jovem adulto, com a noção de que ser cristão é sempre um compromisso militante, expressão chave dos meus anos de Ação Católica. E, na minha vida, esse compromisso militante significou invariavelmente um compromisso político, um envolvimento sem disfarces nem reservas com a construção da sociedade a partir de escolhas coletivas contrastantes”.
É claro e conhecido que em todos os movimentos e organismos políticos há numerosos intervenientes que se afirmam ou são conhecidos como católicos. Aliás, isso será o mais natural nos cidadãos de um país que se afirmam maioritariamente católicos (cerca de 80 por cento) embora apenas pouco mais de vinte por cento se afirmem praticantes, entendendo por praticantes os que habitualmente participam nas celebrações religiosas.
Há no entanto outras formas de ser praticantes, como a defesa dos valores humanos ou de uma cultura construtora da sociedade humana baseada nos princípios evangélicos.
Também é tradicional estabelecer a ligação entre o ser católico ou cristão e os partidos de direita: muitos deles foram fundados por personalidades oriundas dos movimentos de Igreja, designadamente da Ação Católica. O sentido político essencial é a promoção e a procura da justiça social e dos equilíbrios no relacionamento humano. Podem variar as formas de a encontrar e de por ela trabalhar.
O empenhamento em movimentos da esquerda constitui uma opção também válida: os caminhos da construção da justiça, da promoção humana, da valorização da pessoa e das instituições fundadas no bem comum encontram o fundamento no Evangelho: “Um só é o vosso Pai e todos vós sois irmãos”, “procurai o Reino de Deus e a sua justiça”, “o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos e mim o fizestes”, “os discípulos tinham tudo em comum”, “a multidão dos que acreditaram era um só coração e uma só alma”, etc.
Considera J. M Pureza: “Voltar a essa convocação faz dos Evangelhos uma referência política de primeira grandeza. Faz da política a organização da sociedade alimentada por vidas mudadas e que potencia essa mudança. A política que conta é essa: a da escolha de caminhos que mudem as vidas sofridas e, ao mesmo tempo, as vidas arrogantes”.
Por isso cita as palavras do Papa Francisco, que tantas vezes aqui temos lembrado: “a política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum.” (Evangelii Gaudium, 205).