As linguagens da democracia e da Paz

Por M. Correia Fernandes

No editorial anterior Jorge Cunha recordava a “palavra desarmada” de Bento XV como uma manifestação oculta ou incontida da beligerância que enforma os nossos coletivos sentimentos sobre o drama da guerra. Temos chamado a atenção para o uso indiscriminado de termos e conceitos que manifestam a dependência social de entendimentos e sentimentos em que o conflito e o confrontamento de justificações e atitudes envolve a nossa visão da sociedade e do mundo. Um tal espírito de confrontamento situa-se na base das decisões dos conflitos e da guerra. A guerra não começa apenas com as armas, começa com os relacionamentos de pessoas e povos.

A nossa linguagem está eivada de conceitos bélicos e de uma agressividade encoberta: termos frequentes e aparentemente inócuos, como “disparar os preços”, “brutal aumento” e outros conteúdos em que o espírito bélico está embebido, na linguagem corrente, trazem-nos uma consciência coletiva inconscientemente marcada pelo confronto.

Como evidencia o Papa, “estes circuitos fechados (da informação e da linguagem, diríamos) facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios”. “Quanto menor for a amplitude da mente e do coração duma pessoa, tanto menos poderá interpretar a realidade circundante em que está imersa”.

Na “Pacem, Dei Munus” (1920), Bento XV lançara já as propostas que o Papa Francisco hoje apresenta: “Exortamos que se decidam [os povos e as nações] a esquecer voluntariamente toda a rivalidade, toda a injúria recíproca e a unir-se pelo vínculo da caridade cristã para a qual não há ninguém estrangeiro”.

É essencial uma “caridade política”, lembrou o Papa Francisco, na Laudato Sì, referenciando o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, ao escrever “O amor social é a chave para um desenvolvimento autêntico: Para tornar a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social – nos planos político, económico, cultural – fazendo dele a norma constante e suprema do agir».

Acrescentaríamos que esse sentido de “caridade política” se deve igualmente cultivar e manifestar na linguagem política, social, jornalística, radiofónica, televisiva e na linguagem quotidiana.

Esta dimensão essencial e esquecida da linguagem que, mesmo sendo denotativa, é também simbólica, é cuidadosamente lembrada pelo Papa Francisco: “As pessoas escolhem vincular-se de maneira constante e obsessiva. Isto favorece o pululamento de formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro, num desregramento tal que se existisse no contacto pessoal acabaríamos todos por nos destruir entre nós. A agressividade social encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores”. (Fratelli Tutti, 45).

Somos igualmente confrontados com a linguagem ideológica, em “circuitos fechados que

facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios».

Por sua vez o papa Francisco presenta quatro vícios da linguagem social corrente: a desinformação, a calúnia, a difamação, a coprofilia (ou o uso da linguagem do gosto pelo sujo, o obsceno e o torpe e o gosto do não decente).

Como bem afirma: “Ainda estamos longe duma globalização dos direitos humanos mais essenciais. Vendo que todo o tipo de intolerância fundamentalista danifica as relações entre pessoas, grupos e povos, comprometamo-nos a viver e ensinar o valor do respeito, o amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade da dignidade de todo o ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos, atividades e até pecados que possa ter. Enquanto os fanatismos, as lógicas fechadas e a fragmentação social e cultural proliferam na sociedade atual, um bom político dá o primeiro passo para que se ouçam as diferentes vozes. É verdade que as diferenças geram conflitos, mas a uniformidade gera asfixia e neutraliza-nos culturalmente” (Fratelli Tutti).

Caberia aqui lembrar palavras de J. Ratzinger  (depois Bento XVI): “Ouso afirmar que a democracia apenas pode funcionar se a consciência funcionar e que esta se torna muda se não se orientar pelos valores éticos básicos do cristianismo, os quais são de facto também realizáveis fora da confissão cristã e mesmo no contexto de uma religião não cristã” (Os fundamentos espirituais da Europa, 2011).

Cuidemos então a linguagem, que é forma de valorizar a consciência, de cuidar sentimentos, emoções, atitudes, relacionamentos. Humanizar a linguagem é humanizar a pessoa e humanizar a vida, de criar a consciência pessoal e social de um humanismo construtivo.