Reflexões sobre a guerra, do séc. XVII ao séc. XXI

Por M. Correia Fernandes

O que é a guerra? Alguém a sabe definir de forma conveniente, mesmo depois de tantos relatos, tantas considerações, tantas entrevistas, tantas teorias de causa e efeito?

É conhecido (e divulgado mais que outros textos do autor) uma passagem do padre António Vieira (1608-1697), ele que viveu e bem conhecia acontecimentos bélicos do seu tempo, em que elabora um retrato da guerra, não das realidades técnicas ou organizativas que enchem notícias e comentários, mas pelos seus dramas humanos e efeitos socais. Recorde-se:

“É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e, quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro: – o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro.”

Não conhecia Vieira nem os tanques, nem os drones, nem os mísseis balísticos, nem as ameaças nucleares. No entanto seria difícil encontrar melhor descrição da realidade de qualquer guerra e de todas as guerras. E dos dramas humanos que ela encerra.

A guerra tem sido tema de inspiração e objeto da múltiplas análises por escritores de todos os tempos, quer das suas realidades militares e técnicas quer sobretudo da influência e condicionamentos sobre as vivências do relacionamento humano, do amor, dos conflitos pessoais e dos dramas das pessoas e das instituições.
Pelos anos de 1914 escreve Aquilino Ribeiro (1885-1963) um livro de memórias que saiu com o título ´É a guerra: diário”, título que certamente lhe terá sido sugerido pelo início da citada frase de António Vieira. Neste escrito, diário (datado de 1 de agosto a 26 de setembro de 1914) traça um retrato de vivências pessoais sobre um conflito que marcou a História do século XX, a chamada Primeira Grande Guerra, que ele seguiu a partir de Paris onde vivia nessa ocasião, analisando as causas, as realidades e os primeiros momentos que originaram e marcaram esse conflito, no qual, no contexto da República entretanto instaurada entre nós, participaram e morreram muitos soldados portugueses. Num prefácio, datado de Maio de 1934, na ascensão do nazismo, escreve: “A Alemanha dos nossos dias, que ferve na mística mais descabelada, acende autos de fé dos livros que divergem do credo estreitamente nazi, provoca o êxodo dos judeus e encurrala em campos de concentração, até se renderem á mercê, os que não comungam na religião nascente”. Um retrato do que aconteceria anos depois. Este volume de Aquilino mereceu um prefácio para a edição da Bertrand de 2014, de outro escritor atual que também se adentra pelos meandros de guerras, Mário Cláudio.

Mas desde as crónicas de Fernão Lopes, da Décadas da Ásia de João de Barros e de Diogo do Couto, das lutas da Catalunha descritas por Francisco Manuel de Melo, a presença dos conflitos está inevitavelmente presente na literatura portuguesa.

Impossível, porém, seria não lembrar no contexto da atual, no quadro da guerra entre Rússia e Ucrânia, personalizada pela ambição do poder oligárquico e autocrático de um Presidente da Rússia, a universal crónica romanceada de Leon Tolstoi Guerra e Paz, completada em 1863. O quadro é o das invasões napoleónicas que assolaram a Europa, para ocidente e para oriente, que terminou com a derrota pelas tropas russas em 1812, e que deu origem à conhecida composição orquestral de Tchaikovsky com esse título.

Inicialmente escrito em crónicas para uma publicação da época, a grandiosa obra de Tolstoi nem sequer seria um projeto de romance, mas assim tem sido considerado pela riqueza das descrições, pela observação e na construção dos acontecimentos, pelo realismo dos quadros e pela riqueza da análise psicológica das personagens, ao longo de quatro livros, que o tornam os das mais notáveis obras da literatura universal, e cujo título terá sido inspirado na obra do filósofo francês Proudhon La Guerre et la Paix, de 1861.

Que esta sugestão, nascida de um russo universal, de generoso humanismo (como Dostoievsky, ou Tchecov) possa fazer-nos passar da guerra à paz entre russos e ucranianos, ao menos pelas diligências propostas pelo Papa Francisco que anuncia a sua intenção de mediar negociações nesse sentido (juntamente com as Nações Unidas, a União Europeia e a China). A guerra não é do povo russo, mas das forças do poder: o povo russo, como todos os povos, anseia a paz.

Contradições

O que mais nos perturba, para além da violência, é a hipocrisia característica de todas as mensagens de guerra: por um lado o recrudescer dos bombardeamentos sobre as cidades, os bairros e até os edifícios estatais, e por outro lado a proposta da criação de “corredores humanitários” para levar socorro os que não morrem.

Outra dimensão estranha, dada por uma imagem divulgada na imprensa: uma figura de militar camuflado ensinando a manusear uma arma para cidadãos atemorizados. Como é possível combater uma guerra, grande forte, com outra guerra pequena e fraca, mas que é sempre atitude belicista? Uma coisa é a necessidade de legítima defesa, outra a resposta pela violência.

Causa funda perturbação a insensibilidade de um ditador perante os apelos de outros responsáveis do mundo. António Guterres salientou que o dia mais triste de toda a sua missão fora a decisão de Putin invadir, apesar de todos os apelos e todas as negociações na altura em curso, os territórios da Ucrânia.

Perfila-se a ameaça nuclear. Poderá ser uma manobra de atemorização ou funcionará como dissuasão?

Por outro lado, o grande drama é que o castigo político e económico avançado pelo Ocidente através das sanções que pretende infligir sobre a Rússia pelas restrições económicas e financeiras acabam por recair sobre todos os cidadãos de forma igualmente violenta.

Divulgou-se uma mensagem nas redes sociais, atribuída a Erich Hartmann, piloto alemão da II Grande Guerra, que afirmava: “A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam entre si por decisão de adultos que se conhecem, se odeiam mas não se matam”.

Podíamos acrescentar: “e sofrem a imposição de sanções dos poderosos e ricos para que todos os cidadãos pacíficos e pobres paguem a fatura”.

Há que propor a palavra de Francisco, dada no primeiro domingo da Quaresma, a propósito do evangelho do dia, que fazia bem o retrato da diabólica tentação da ambição e do domínio, denunciando as “tentações” do poder e da exploração do ser humano, desafiando para a escolha da “verdadeira liberdade”; que está não em possuir, mas em partilhar; não em explorar os outros, mas em amá-los; não na obsessão pelo poder, mas na alegria do serviço”.

Precisamente o inverso da evangélica tentação diabólica da força que se encontra agora em estado de efetivação. De facto as tentações de Jesus Cristo, no seu valor bíblico e simbólico, são as tentações da condição humana. A demonstração está na História: “Dar-te-ei estes reinos e o seu poder se prostrado me adorares”. Aí estão os reinos: a Rússia, o Iraque, o Irão, a Síria, os países africanos…