Para pensar com vigor a imoralidade da guerra

Por Jorge Teixeira da Cunha

Fez no último Janeiro um século que morreu o Papa Bento XV, que desempenhou o ministério de Pedro de 1914 a 1922. Quase passava a ocasião desta lembrança, não fosse a inesperada actualidade que a invasão da Ucrânia trouxe ao seu pensamento sobre a questão moral da guerra. A eleição de Giacomo della Chiesa coincidiu com o início das hostilidades da chamada Grande Guerra (1914-18). Por isso, tudo levava a supor que o recém-eleito papa teria uma grande preocupação pastoral com a guerra. Mas, dado o seu perfil institucional, nada augurava o carácter completamente inovador do seu pensamento sobre o assunto. Mas o inesperado aconteceu. E podemos dizer que o verdadeiro inovador da teologia moral da guerra não foi o Concílio Vaticano II, mas foi, precisamente, o Papa Bento XV. Por isso, não pode ser deixada na sombra a sua memória neste momento de regresso da Europa à beligerância.

Até aos inícios do séc. XIX, se exceptuarmos alguns movimentos pacifistas sem relevo institucional, a moral cristã tratava o tema da beligerância no esquema de aceitar ou condenar a guerra, seguindo as condições que legitimavam ou condenavam a chamada “guerra justa”. Esse procedimento remontava pelo menos a S. Agostinho. Ora foi Bento XV que deixou de seguir esse caminho. Desde o primeiro momento do seu magistério, não teve dúvidas em condenar liminarmente a possibilidade da guerra como forma de resolver conflitos. Recordamos as duras palavras que usou para falar da guerra desse tempo: “a horrenda carnificina que desonra a Europa” (1915) em que povos cristãos, de ambos os lados, se digladiam numa “razia inútil” (1917).

A recusa profética de tratar casuisticamente a questão da guerra despertou uma oposição violentíssima ao Papa Bento XV. Talvez nenhum outro, em tempos recentes, tenha conhecido um ódio, tanto dos políticos como dos fiéis. Lembremos só que o Georges Clemenceau, presidente do governo francês, o insultou como “Pape boche” e que um pregador bem apreciado por tantos, ainda hoje, como o Padre Sertillanges, num sermão em “Notre-Dame”, declarou alto e bom som: “Santidade, fique lá com a sua paz!”. Isso para não lembrar a intelectualidade europeia que, de modo geral, se alinhou de um ou do outro lado do conflito.

Esta condenação de princípio à aprovação moral da guerra, seja em que circunstância for, abriu um caminho novo a reflexão moral cristã. Reparemos que essa inovação de sentido não pode ser classificada como ingenuidade, ou como um pacifismo débil. Pelo contrário, essa opção mergulha as suas raízes na lucidez do Evangelho de Jesus. Com atestam as fontes cristãs, Jesus advertiu e sofreu como ninguém a conflitualidade e a força do mal que constitui o mundo. E, no entanto, a sua atitude inaugura uma racionalidade que vai na direcção de nunca admitir a guerra como forma de pacificar pessoas e povos. Diversos caminhos serão possíveis para a paz, mas será sempre sob a forma de não-violência que se decidirá em nome de uma racionalidade moral cristã. A força da palavra terá sempre precedência sobre a palavra da força, sejam quais forem as circunstâncias.

Bento XV teve ocasião de publicar em 1920, um texto muito belo, a encíclica “Pacem, Dei munus” que antecipa o texto da “Pacem in Terris” e os documentos do Concílio Vaticano II. Mas é justo reconhecer que nos anos sessenta houve mais hesitações nesta matéria, mesmo perante a evidência dos arsenais nucleares que o Papa Della Chiesa felizmente não conheceu.

A recordação de Bento XV, um século depois da sua morte, não pode ser mais actual, por estes dias. A força da sua palavra desarmada é um contributo para os cristãos se orientarem, no contexto destes dias de loucura, de evolução imprevisível, que se estão a viver na Europa Oriental. A invasão da Ucrânia manifesta, pela enésima vez, a loucura humana. A beligerância como forma de fazer justiça e paz provém sempre de uma ilusão neurótica. Ora, é precisamente contra esta ilusão idolátrica que é necessário erguer a proposta da não-violência activa que está no centro do messianismo de Jesus.