
Por M. Correia Fernandes
Perfilavam-se as ameaças, mas subsistia e esperança de que alguns dos valores civilizacionais essenciais à condição humana pudessem sobreviver, embora tímidos e abertos, perante a ambição do poder e de domínio. Infelizmente não foi assim, e o espírito maléfico que conduz a todas as guerras conduziu a mais uma, tendo por cenário a Europa, onde floresceram os ideais da paz, nascidos por exemplo de São Bento, fundador do ideal europeu, do espírito franciscano, da ação de santos como Cirilo e Metódio, que no século IX proclamaram o ideal cristão aos povos eslavos, lhe anunciaram a boa nova da paz e do espirito fraterno e redentor, e até lhe deixaram um alfabeto para conhecimento da escritura e da mensagem evangélica. Assim a guerra instala-se na Europa, como as grandes guerras do século XX, a imperiosa e impiedosa Guerra do Golfo e a destruidora dos países balcânicos no final do século. No séc. XXI conhecíamos a continuação das lutas na Etiópia, no corno de África, na Líbia e no Sudão.
Tristemente, tudo isto acontece ao aproximar-se o tempo cristão da Quaresma e a grande solenidade da Páscoa, que este ano pensávamos celebrar na forma aberta e esperançosa de pós-pandemia, e agora nos fecham como forma aberta de drama humano, de destruição e morte.
Não foram eficazes conversações nem formas de diálogo de que era legítimo esperar resultados. Não foram eficazes os apelos dos dirigentes e das estruturas europeias. Não surtiu efeito nem o gesto que o Papa Francisco fez ao embaixador da Rússia no Vaticano, deslocando-se a pé à sua residência.
Na mensagem quaresmal, escrita antes do anúncio da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, lembrava Francisco: “Perante a amarga desilusão por tantos sonhos desfeitos, a inquietação com os desafios a enfrentar, o desconsolo pela pobreza de meios à disposição, a tentação é fechar-se num egoísmo individualista e, à vista dos sofrimentos alheios, refugiar-se na indiferença”. No quadro da invasão da Ucrânia surgiram iniciativas de superar esta indiferença, o que se torna um consolo para as consciências; surgiram também as múltiplas iniciativas mediáticas, que acabam por transformar a guerra em espetáculo, esquecendo a solidariedade ou transformando a própria solidariedade em espetáculo.
Falta-nos porém a outra sugestão de Francisco: “A ilusão de nos bastar a nós próprios é perigosa… importa fundar-nos na fé que não nos preserva das tribulações da vida, mas permite atravessá-las unidos a Deus em Cristo”. Ou que “o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia».
Palavras que deveriam ser lema para as pessoas, para os grupos sociais (como os sindicatos ou os partidos) e para os responsáveis pela governação dos países e dos povos.
Por sua vez, o Bispo do Porto e seus auxiliares lançaram propostas para a Quaresma assentes no sentido cristão da caridade, pelo caminho da purificação, “de libertação de tudo o que é ambíguo e desviante na experiência de Deus.”
Esta é uma libertação essencial, que devia ser assumida em todas as decisões e em todos os caminhos de diálogo e de humanismo, talvez implique uma desconstrução de processos do habitual exercício do poder e da orientação das populações para o equilíbrio das suas vidas.
Um encontro de oração, reunindo católicos e ortodoxos reafirmou a guerra como contrária às leis de Deus e às leis humanas, sublinhando a importância de fazer “oração com o povo da Ucrânia e com todos os que sejam atingidos por esta guerra, respondendo com a oração e a solidariedade, buscando o dom da Paz.
É este um dado importante e esquecido nos abundantes comentários e análises sociológicas, nas declarações e até nos gestos mais solidários: o drama da guerra, desta e de todas não é apenas o do povo da Ucrânia. É o do povo russo, da população europeia, da população de todo o mundo, porque todos vão sofrer no seu quotidiano as consequência do gesto imperialista da invasão. Uma atitude bélica é sempre uma atitude contrária à Humanidade inteira.