Quaresma 2022 – O tempo favorável da escuta

Foto: João Lopes Cardoso

O bispo do Porto D. Manuel Linda e os bispos auxiliares, D. Pio Alves, D. Armando Domingues e D. Vitorino Soares publicam uma mensagem para a Quaresma. VP divulga na íntegra.

«Eu respondi-te no tempo da graça e socorri-te no dia da salvação” (Is 49, 7). É promessa do próprio Deus que, em cada tempo favorável, não nos faltará com as suas graças, aquelas que sabemos precisar, mas sobretudo as que só o Espírito Santo sabe e pode dar.

Inicia a Quaresma, esse tempo favorável de escuta: escuta atenta da Palavra de Deus que renova, escuta do amor misericordioso de Deus que salva e escuta dos irmãos de caminho que pedem o melhor de nós. São 40 dias favoráveis a um percurso espiritual com consequências concretas e visíveis nas práticas cristãs da oração, do jejum e da esmola.

Porém, esta Quaresma de 2022 é tempo duplamente favorável: decorre em pleno tempo de escuta sinodal na nossa diocese. É uma fase de preparação do Sínodo, rica e envolvente, em que tudo inicia na necessidade de uma escuta renovada de Deus e dos irmãos, que ilumine, incentive e dê esperança no futuro. Um tempo que apela à reciprocidade: escutar e ser escutado. É bom não o esquecer: o Sínodo é um capítulo da história da salvação que Deus opera na Igreja universal. Podemos sonhar juntos uma Igreja diversa: mais gerada que gerida, mais caminho que estacionamento, mais casa do Povo de Deus em saída que clube de praticantes. Escutar a todos faz bem à própria Igreja.

Servem-nos três símbolos expressivos para viver juntos a experiência sinodal em tempo de Quaresma: o deserto, o caminho e a cruz.

  1. O deserto

Neste tempo favorável, a Liturgia do 1º domingo da Quaresma propõe-nos o relato das tentações de Jesus no deserto, convidando a olhar o lugar de Deus na própria vida e a qualidade da missão que nos anima. À tentação dos bens, do poder ou de uma missão triunfal, a Palavra ressoa forte: “nem só de pão vive o homem” ou “só a Deus adorarás”!

O Processo Sinodal é também um processo espiritual. Não é um exercício mecânico de recolha de dados ou uma série de reuniões e debates. A escuta sinodal tem em vista o discernimento que é palavra-chave em todo o processo e a razão de toda a escuta. Num sentido espiritual, o discernimento é a arte de interpretar para onde nos conduzem os desejos do coração, sem nos deixarmos seduzir por aquilo que nos leva aonde não devemos ir. O discernimento envolve reflexão na tomada de decisões nas nossas vidas concretas para procurar encontrar a vontade de Deus.

Então comecemos por nós, entremos no deserto e a “deixemo-nos discernir pelo Espírito de Deus”!  Deserto é sinónimo de isolamento, de silêncio, de possibilidade de escuta de Deus e encontro com a verdade de nós próprios. Hoje há uma tremenda falta de silêncio e, quando não há ruído ou trabalho, muitas pessoas sentem-se incomodadas porque não sabem o que fazer. O deserto lembra esta oportunidade para nos deixarmos penetrar pelo Espírito de Deus, como indivíduos. O discernimento é, então, uma graça a acolher de Deus em relação ao que se é e se vive como discípulos de Jesus.

A pergunta universal para a escuta sinodal é: “anunciando o Evangelho, uma Igreja sinodal ‘caminha em conjunto’: como é que este ‘caminhar juntos’ se realiza hoje na nossa Igreja?”. Neste deserto, podemos escutar pessoalmente o “silêncio onde Deus fala” e interrogar-nos: “como me sinto na Igreja? Sinto-me plenamente dentro, participando da missão comum ou nem por isso? O que me entristece? Como olho para os outros que, porque batizados, devem caminhar comigo e eu com eles? Como evangelizo na minha família, trabalho, escola ou grupo da paróquia? Que posso mudar em mim para caminharmos mais em conjunto? Que propostas tenho para fazer a Igreja mais de todos?”

A fidelidade, para ser verdadeira, é posta à prova; o deserto é então símbolo de purificação, de libertação de tudo o que é ambíguo e desviante na experiência de Deus. Para este completo discernimento de nós próprios, reconheceremos as nossas situações de não-liberdade: indiferença, autossuficiência, egoísmo, orgulho, presunção, agressividade, etc. Queixamo-nos destas escravidões todos os dias e limitamo-nos, porventura, a acusar a decadência da sociedade e também a da Igreja.

Desta vez, vamos “desmascarar-nos” a nós próprios! Para nos lançarmos num caminho novo!

  1. O Caminho

Após as tentações no deserto, Jesus deu início à missão: anunciar o Evangelho do reino. Para tal, chamou um grupo com quem caminhar, começou a ensiná-los ao longo do caminho, mergulhou-os no mistério da Sua Paixão, Morte e Ressurreição. Um longo caminho, sem pressas e sem queimar etapas. Só perceberiam plenamente quando, após a ressurreição, receberam o Espírito Santo.

Mais que para um Sínodo dos Bispos em 2023, o Papa convocou todo o Povo de Deus para um caminho sinodal, esperando que, por graça de Deus, no final, todos tenhamos adquirido um estilo mais participativo e mais sinodal de ser e viver em Igreja. Um estilo que, só por si, seja já evangelização. Cabem todos neste caminho, até os não praticantes, indiferentes ou descrentes. Que bela esta Igreja que se abre, que vai ao encontro, que se faz próxima, que ganha a confiança de quem a olha com desconfiança, que não se preocupa com os números, mas com as pessoas.

Com este símbolo do caminho, à semelhança de Jesus, somos convidados a cuidar da renovação dos grupos a que pertencemos, a procurar momentos de escuta e enriquecer o discernimento comunitário. Não se imaginam os frutos que brotariam numa família onde os seus membros se perguntassem uns aos outros: “que exemplo de ser Igreja vos tenho dado e que exemplo me dão vocês a mim? Como é que eu tenho sabido viver e comunicar o Evangelho na família? Quem o faz melhor cá em casa e pode ajudar os outros? Como nos temos aberto a outras famílias para caminharmos juntos? Como temos participado ativamente nas dinâmicas pastorais da paróquia e na evangelização do mundo? Como temos caminhado com os mais pobres e frágeis? Que propostas temos para fazer a Igreja mais familiar, mais fraterna?”

Para melhor encarnar a sinodalidade, as famílias com as suas histórias de diálogo e discernimento, de tensões e acordos, são essenciais. Elas sabem o que custa estar juntos, amarem-se nas diferenças, ouvir-se e dizer tudo com clareza, sem medo, porque sabem que vão ser escutados com amor!

Isto pode ser replicado em cada grupo pastoral ou outro. Quem não se deixou ainda fascinar, pelo menos uma vez, pela possibilidade de uma paróquia viva, por uma liturgia participativa e bem animada, pelo ideal de família onde a conjugalidade fiel e fecunda é o sinal do amor de Deus, por uma catequese que envolva crianças e pais num único esforço educativo, por uma caridade testemunhada que chega aos últimos, pela possibilidade de uma justiça mais generalizada? Às vezes, talvez demasiadas, começámos! Depois, não vimos os resultados, que esperávamos serem automáticos e a curto prazo. E o desânimo chegou, como aos apóstolos: “Senhor, andámos à pesca a noite toda e não apanhámos nada!” Também este ano, Jesus repete: “Faz-te ao largo e lança as redes” (Lc 5, 1-1). Tudo isto, depende de mim, de ti, de nós! Depende de nos questionarmos juntos e de assumirmos as consequências de termos ousado a escuta… Porque Deus fala sempre. Se O deixarmos!

Fica a sugestão para uma penitência quaresmal coletiva: constituir ou participar num grupo de escuta sinodal, com as pessoas da família, mas também de grupo paroquial, de associação, escola ou outro, não para pedir opiniões, mas para fazer experiência da graça própria deste estilo sinodal. Qualquer local ou modo serve: em casa, num espaço de reuniões ou num ocasional encontro de amigos ou colegas, numa caminhada organizada ou num café, na igreja ou no mundo. Que ninguém fique de fora. A escuta não é para reivindicar, para acusar, para denunciar, mas para discernir caminhos novos para nós batizados, para as nossas comunidades eclesiais, para a Igreja e para o mundo. No final, ajudaria escrever a experiência feita e o que perceberam em conjunto. Quem sabe se não ganharão o gosto de continuar o caminho iniciado…

  1. A cruz

Este último símbolo é enriquecido com as imagens que nos chegam da peregrinação dos símbolos da Jornada Mundial da Juventude que percorrem as dioceses do país e chegarão até nós em outubro. Quando é transportada, precisa de um grupo que a carregue! Como se Cristo, o verdadeiro Senhor da cruz, fosse “esse grupo” de pessoas, unidas pelo ritmo conjunto da passada, jovens ou outros, que a levam com veneração. Ali, vimos sobretudo jovens centrados no Amor radical de que Jesus é modelo; jovens que mostram à Igreja a pressa do amor que une a todos numa única fraternidade; jovens que não querem ir à frente nem atrás dos mais velhos ou mais novos, de padres ou bispos, de leigos muito crentes ou homens descrentes, mas querem seguir juntos. São imagem da Igreja peregrina, não acomodada e envelhecida. Também podemos ir com eles, prontos a transportar a mesma cruz de Cristo nos sofrimentos próprios e nos da humanidade sofredora. Nela podemos descobrir a presença amorosa de Deus, sobretudo se, ao lado, alguém caminha e ajuda a carregá-la, qual mão amorosa, sinal da proximidade de Deus.

Defendi-te e designei-te como aliança do povo, para …dizeres aos prisioneiros: ‘Saí da prisão!’ e aos que estão nas trevas: ‘Vinde à luz!’ (Is 49, 8-9). Neste percurso quaresmal em estilo sinodal, somos desafiados a interrogar-nos sobre quem deixamos sozinhos no caminho, quais as periferias abandonadas ou ignoradas, quais são os mais carenciados de companheiros de estrada, para discernir por quem começar e com quem ir. É-nos pedida uma intenção “agápica” de acolher a todos como Jesus fez até ao fim (Jo 13, 1), até ao dom de si na cruz, de caminhar com eles até “sairem das prisões e abandonarem as trevas” como diz o Profeta. E isto significa a intenção de escutar, de compreender a partir de dentro, de dar o primeiro passo, de se fazer um, de saber esperar e de saber dar a sua contribuição no momento certo e do modo certo.

É necessário manter vivo o entusiasmo pelos caminhos novos, para não ir pelos de sempre que podem apenas parecer mais seguros, mas não conduzem a uma Páscoa Nova. Gostaríamos de atalhos rápidos, enquanto Deus escolhe a gradualidade e tempos longos fazendo-nos entender que a Páscoa não é um lugar ou algo material, mas uma forma de ser novo, renovado, nas relações com Deus, com nós mesmos, com os outros e com a criação: “Serei o teu Deus e serás o meu povo” (Ex 6,7).

Este entusiasmo, que é também força e coragem, chega-nos da certeza de que Jesus caminha com a Sua Igreja, levando-a por onde deve ir. Tudo depende da nossa vontade de responder ao convite de Deus com uma palavra simples, mas capaz de mudar a história. É o nosso “aqui estou”: estou aqui pronto para o caminho!

D. Manuel Linda

D. Pio Alves

D. Armando Domingues

D. Vitorino Soares