
Ocorre-me muitas vezes o título e o conteúdo simbólico de um romance de José Saramago, Todos os nomes.
Por M. Correia Fernandes
Na narrativa, sobre a qual o autor ajuíza que não se trata de uma investigação sobre gente desaparecia, mas sobre os dramas e dinâmicas da vida, conta-se a história de um funcionário normal de um Arquivo do Registo Civil, que gosta de colecionar notícias de pessoas e acontecimentos, interrogando-se sobre a identidade de cada uma, copiando os dados e histórias das fichas que vai encontrando no arquivo. O súbito contraste entre os dados conhecidos e registados e o desconhecimento das circunstâncias vitais que cada nome encerra ou que detrás dele estão escondidas levam-no a investigar a vida de uma mulher com cujos dados se confrontou. Da realidade anónima passa à busca do encontro pessoal, da identidade e dos dramas vividos.
Este jogo narrativo e identificador tem-me feito lembrar o conjunto dos nomes que nos chamam na nossa vida quotidiana e que constituem múltiplas identidades de todos nós, cada qual à sua maneira, ou inscrito na sua circunstância. Somos nós e as nossas circunstâncias.
Vamos lembrar alguns desses nomes e neles encontrar as vivências ou os dramas com que somos confrontados, e aí lermos a história de cada um. Talvez o primeiro possa ser cliente. Geralmente recebe o designativo de “estimado”, mas o que se pretende é que seja “estimante”, que esteja presente, que se deixe aliciar…
Outro é o de passageiro. Geralmente somos “senhores”, seja nos de autocarros, de comboios ou de aviões. Aqui não se vulgarizou a estima, certamente porque ela não existe, apenas se vulgariza a funcionalidade.
Noutras circunstâncias seremos o “senhor condutor”. Aqui a denominação surge autoritariamente acompanhada de linguagem, não digo ameaçadora, mas de alguma recriminação, e sempre interrogativa e imperante: “os documentos da viatura”, seguida de uma inspeção visual aos ditos e à dita, com consequências variadas segundo as circunstâncias. Ainda que a coisa não enferme de contornos menos aliciantes, há sempre algo de estranho neste nome, com o seu ar de distanciamento prudencial…
Somos também designados por munícipes. Aqui os contornos são algo diferentes: ou nos pedem a contribuição a autárquica, ou a predial, ou a da rampa da garagem… Nunca é para nos dar nada. Ao passarmos de eleitores simpaticamente aliciados, passamos a munícipes contribuintes e repletos de obrigações, mesmo que as ruas estejam esburacadas e cheias de perniciosos pilaretes e riscos contínuos. Mais genérica é a designação de usuário ou de utente, geralmente compaginável com a de passageiro ou munícipe. E de automobilistas e peões todos temos um pouco, não raro marcado pelo drama ou pelo azar…
Também a alguns chamam outros nomes que merecem investigação, como paroquianos ou diocesanos: aqui geralmente somos queridos ou estimados, mas prevalece o apelo à generosidade, que é um grande valor humano, sem esquecer a obrigação moral de uma colaboração efetiva.
Também há quem nos chame eleitores, coisa que só somos de vez em quando e em direções muito diversificadas. E contribuintes nem é preciso que nos chamem, porque não somos confrontados com o nome mas com a obrigatoriedade.
Claro que não faltam os camaradas, ou os companheiros, ou os amigos membros do partido, dependendo não da pessoa que sejam, mas do ângulo pelo qual são olhados.
Esta multiplicidade de nomes, de olhares e de funções faz de cada um de nós uma multiplicidade de pessoas. Por isso nos podemos lançar sempre a velha questão do quem somos, donde vimos, para onde vamos, ou o “quis saber quem sou, o que faço aqui”, problema existencial para tema interrogativo e ontológico da canção divulgada, ou de qualquer canção que se preze. A inquietação vislumbrada pelo texto de Saramago torna-se assim tanto esquecida como presente.
A didáctica mínima
Recordo, por outro lado, que nos alvores das modernas teorias da educação, quando se começou, para efeitos de transmissão de conhecimento, a valorizar mais os processos do que os conteúdos estruturais e nucleares das matérias cujo domínio se considera indispensável ao saber, se divulgou muito entre nós um volume de orientação escolar designado por Didáctica Mínima.
Este nome ocorreu-me pela leitura de um texto que não tem nada de didáctica, mas sim de valorização e engrandecimento instrumental. Tratava-se de um texto enológico, a propósito de uma marca de vinho, propondo que aquele era um vinho saboroso e didáctico. Pelo saboroso, a gente ficava com esperança de poder a ele ter acesso, embora difícil, porque o preço era exorbitante para o entendimento dos vinhos. (1)
Agora a parte do didáctico espicaçou-me o interesse e mesmo sem ter bebido o líquido aprendi imenso sobre o termo, que obrigou a pesquisar o conteúdo nas enciclopédias, onde se aprende que a palavra provém do verbo grego didaskein, que significa ensinar e se tornou um termo da linguagem técnica educacional, sobretudo a partir do que Comenius chamou a Didactica Magna. Desta importa reter mais uma vez o que aquele grande pedagogo da Bohemia do séc. XVI afirmava sobre as características do ensino e aprendizagem afirmando a necessidade da sua necessidade e universalidade, na famosa designação de Omnes, omnia, omnibus, omnino, semper, isto é que se deve aprender: todas as pessoas, todos os saberes, para todos, de todas as formas e sempre. Apela-se tanto ao ensinar como ao aprender, tendo o ensino a missão de promover a aprendizagem. Assim o didáctico se refere a formas de traduzir a ação educativa por caminhos que conduzam ao melhor conhecimento e comportamento das crianças e jovens na sua formação.
Por que vislumbre tecnológico teria então o autor usado, em contexto enológico, o termo didáctico? Porque seria tal vinho didáctico? Certamente porque quem dele beber fica inebriado pelo seu sabor e pelos respectivos efeitos. É que a experiência didáctica de um bom vinho pode ter dois caminhos: o da qualidade e o da quantidade. O da qualidade faz-se pela degustação, processo que por natureza é limitado e moroso: Basta ler as indicações dos rótulos dos vinhos, que são um verdadeiro tratado da criatividade em termos de orientação vocabular, como já aqui documentamos, mas que pode sempre ser apreciado e acrescentado.
Por sua vez o da quantidade é sempre um perigo em diversas circunstâncias vitais, como a condução automóvel, a movimentação nos passeios ou o acertar das chaves para entrar em casa, sem falar das ressacas, sejam elas corporais ou laborais.
Então o didáctico pode ser um bom conselho: o seu uso equilibrado e moderado, valorizando a riqueza do seu sabor.
É uma nova dimensão da didáctica mínima.