
Apresentava-nos o Evangelho de Lucas o relato das Bem-aventuranças, certa e reconhecidamente uma das passagens evangélicas centrais da mensagem de Jesus.
Por M. Correia Fernandes
Vale a pena lembrar o livro de Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI), “Jesus de Nazaré” publicada em Portugal em 2008, onde desenvolve o confronto entre as oito bem-aventuranças referidas em Mateus e as quatro referidas em Lucas, estas acompanhadas da sua contraposição nas maldições, ou rejeições morais, traduzidas no “ai de vós…” Realça-se também a contraposição entre a carácter presencial e pessoal da mensagem em Lucas e o carácter genérico e universalizante da formulação de Mateus.
Especialmente digno de nota é o facto de esta formulação traduzir um evidente sentido social e político aplicado aos tempos que correm. As censuras ou rejeições do Reino de Deus situam-se em quatro campos atuais: a ambição ou riqueza (contraposta a felizes vós os pobres), a abundância ou opulência, a auto-satisfação no usufruto dos bens, a busca da opinião pública exaltante ou exaltada. Todos estes são os campos da sociedade moderna. Toda a nossa literatura mediática quotidiana vive do jogo nestes campos.
É certo que, como refere Ratzinger, “o Sermão da Montanha enquanto tal não é um programa social; mas também é verdade que só onde permanecer viva nos sentimentos e no agir a grande orientação que o mesmo nos dá, só onde derivar da fé a força da renúncia e da responsabilidade pelo próximo e pela sociedade inteira, somente aí pode crescer a justiça social”. Por isso importa descobrir e valorizar este sentido de justiça na proclamação e Jesus, transmitida nos contextos desse tempo.
A rejeição da ambição e da riqueza como centro da vida corresponde a uma avaliação de todas as teorias capitalistas em confronto com o sentido social da riqueza.
O domínio da abundância e da opulência é outra vertente da sociedade e das sociedades modernas: valoriza-se a posse, o poder, o domínio, o controlo do capital e açambarcamento em proveito próprio. A esta dimensão se contrapõe o sentido dos bens como caminho e forma de partilha e participação.
Vive o mundo de hoje no ambiente mediático: todos buscam a notoriedade, e relevância social, a capacidade de influir nas decisões da sociedade: neste aspecto, o “vós que agora rides” traduz bem esta ambição do benefício e da centralidade do interesse pessoal e do exibicionismo imperante.
Esta é uma expressão sempre antiga e sempre nova do que Homero chamava a Hibris: a ambição pela qual o homem se eleva a si mesmo como centro do mundo, tornando-se ele mesmo o seu deus. No dizer de Ratzinger, “a verdadeira ameaça do homem consiste na auto-suficiência ostentada”. É a negação de todo o sentido da natureza humana, é igualmente o retrato de toda a dimensão do pecado original.
É neste sentido que podemos afirmar que as Bem-aventuranças, como todo o sermão da montanha, constituem uma “cristologia escondida”, em que Jesus mostra que o verdadeiro rosto humano é a busca de Deus e o verdadeiro sentido moral ou “ético” da vida, em que se afirma a grandeza da vocação do Homem, está na busca do relacionamento sustentado no sentido cristão do amor, no dizer do mesmo J. Ratzinger.
Podemos então concluir com o teólogo e Papa emérito: o sentido global das bem-aventuranças, como todo “o sermão da montanha dirige-se a todo o mundo, no presente e no futuro”, mas “só pode se entendido e vivido no seguimento de Jesus, caminhando com Ele”.
No contexto dos dias que correm, importaria valorizar a proclamação: “bem-aventurados os obreiros da paz”. Pode parecer uma formulação demasiado geral, como tendemos a chamar todas as formulações fundamentais do comportamento humano. No entanto, “sempre que o homem perde a vista de Deus, a paz definha e a violência predomina, com formas de crueldade antes inconcebíveis: vemo-lo hoje com toda a clareza” (J. Ratzinger).
Como o podemos verificar nas tensões modernas e neste conflito que agora nos ameaça. Como os que levaram a todas as guerras e a todas ânsias de domínio, de ambição e de poder.
Bem-aventurados os que procuram, e edificam, e constroem a paz. Como há tão poucos que o fazem e têm por horizonte. E quando o procuram, fazem-no mais por medo do que por construção, e menos por amor.