
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
As palavras do Senhor na chamada Narração da Instituição das Orações Eucaristia não são nem uma “fórmula” que valha por si só e que se possa isolar, nem um mero relato sem outra intencionalidade que o de lembrar factos passados, nem uma pura citação da Sagrada Escritura, que se deva transcrever como prova de uma tese. São, isso sim, um momento particularmente solene – “embolismo narrativo”, lhe chama Cesare Giraudo, estudioso destes textos eucológicos – da “oração de ação de graças e de consagração” que é “o ponto central e culminante de toda a celebração” (IGMR 78). Por isso as várias tradições anafóricas do Oriente e do Ocidente não têm a preocupação de reproduzir literalmente qualquer das versões canónicas do Novo testamento das Palavras do Senhor na Ceia da Instituição, mas sim de formular a “lex orandi” – que vincula a “lex credendi” – da Igreja no momento em que, obedecendo à ordem do seu Senhor, celebra o memorial da sua Páscoa redentora. Assim se compreende que, no Rito Romano, se mantenha nas palavras do Senhor o adjetivo eterna a qualificar o Sangue – “Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança” – adjetivo que não consta de nenhuma das versões neotestamentárias da Ceia, mas que exprime fielmente a lex orandi e, consequentemente, a lex credendi. Caso ainda mais singular era a milenar interpolação da expressão “mysterium fidei” nas palavras ditas por Cristo ao entregar o cálice do seu Sangue aos discípulos. Sobre o sentido desta expressão que continua presente, embora com nova colocação e função, transcrevemos um recente blog de Matias Augé:
«No Missale Romanum de Pio V, as palavras sobre o cálice são as seguintes: “Hic est enim Calix sanguinis mei, novi et aeterni testamenti: mysterium fidei: qui pro vobis et pro multis effundetur in remissionem peccatorum”. Como reconhece J.-A. Jungmann, na sua clássica obra Missarum sollemnia, sobre o significado da expressão “mysterium fidei” está-se bem longe de haver consenso. Segundo o historiador M. Righetti, trata-se de uma interpolação tardia de origem romana (outros consideram-na galicana), inserida provavelmente para afirmar a realidade da transubstanciação por força das palavras consecratórias. Estes grandes estudiosos, após o Vaticano II, formavam parte do Coetus X, encarregado de reformar o Ordo Missae, que decidiu colocar “mysterium fidei” (“mistero della fede” no Messale italiano [“mistério da fé” no Missal português]) depois das palavras consecratórias em forma de aclamação pronunciada pelo celebrante, a que a assembleia responde. V. Raffa chama-a justamente “aclamação pascal” porque se refere ao mistério pascal na sua globalidade: a morte, a ressurreição de Cristo e a sua última vinda na glória. Deste mistério a Eucaristia é o memorial atualizante. No Misal español, a tradução de “Mysterium fidei” é: “Este es el Sacramento de nuestra fe” [Este é o Sacramento da nossa fé].
Um outro caso semelhante encontramo-lo na oração depois da comunhão da missa do dia na solenidade da Epifania do Senhor, em que a expressão “mysterium, cuius nos participes esse voluisti” é traduzida pelo Messale italiano: “il mistero di cui ci hai fatto partecipi” [no Missal Português: “o mistério em que por vossa graça participamos”], ao passo que o Misal español traduz: “la eficacia de este sacramento”. Em ambos os casos, a tradução espanhola, fazendo uso do termo “sacramento” faz referência imediata e exclusiva à Eucaristia, ao passo que a versão italiana [e a portuguesa], usando o termo “mistério” do texto latino, faz referência à globalidade do mistério da salvação atualizado no memorial.
Efetivamente, no Novo Testamento, particularmente em São Paulo, o mistério de Deus (Col 2, 2) ou de Cristo (Ef 3, 4; Col 4, 3), escondido de há séculos em Deus (Ef 3, 9; Col 1, 26), mas revelado aos apóstolos e aos profetas (Ef 3, 5), é o anúncio da salvação universal (Ef 3, 4-12; Col 1, 24-29) para judeus e pagãos (Gal 3, 28; Ef 2, 11-18). Por outras palavras, o mistério é o desígnio escondido de Deus, manifestado mediante a revelação e destinado a ser realizado».
Matias Augé, Blog Liturgia e dintorni, afixação de 30 de janeiro de 2022