Em louvor dos animais

Foi largamente noticiado o transplante do coração de um porco num ser humano que dele carecia. O animal teve de ser geneticamente adaptado para que o receptor humano não faça uma rejeição imediata.

Por Jorge Teixeira da Cunha

Tanto quanto sabemos, o doente está vivo cerca de um mês após a operação. O tema despertou uma enorme onde de esperança entre todas as pessoas que estão e estarão na lista de espera para a substituição de um órgão vital para a sua sobrevivência. Mais do que uma discussão moral sobre o tema dos xenotransplantes, ou seja, das trocas de órgãos entre viventes de espécies diferentes, queremos aqui fazer uma reflexão sobre o tema dos animais, do seu lugar entre os restantes viventes e sobre o que devemos a esses nossos companheiros de jornada histórica.

A temática dos animais quase desapareceu da teologia e da ética nos últimos séculos. Não foi assim na Idade Média, pois nesse tempo havia uma larga reflexão sobre o assunto. Foi desde que a cultura se tornou antropocêntrica que deixamos de tratar dos outros viventes e nos concentrámos, até ao exagero, sobre nós próprios. Talvez este caminho esteja também na origem do modo menos digno que tratamos as plantes e os animais na nossa civilização tecnológica. É certo que, recentemente, devido à crise ecológica, tem havido uma mudança de perspectiva e se tem dado uma atenção ao tema, mas, mesmo assim, com óculos demasiado centrados no interesse da espécie humana. Baste olhar para a facilidade com que falamos de “direitos” dos animais, com que falta de visão submetemos os animais de companhia aos nossos esquemas de vida, para a falta de amplitude de olhar distinguimos entre animais que têm direitos e os outros que deixamos abandonados na condição de matéria-prima da indústria alimentar.

O porco que foi sacrificado para que o humano possa continuar a viver é o último exemplo do serviço que os animais prestaram e prestam à espécie humana. Há toda a conveniência de prestarmos a nossa homenagem aos animais que nos ajudaram a ser o que somos nos últimos dez mil anos. Foi por essa altura que os nossos antepassados começaram a domesticar as principais espécies que estão ao nosso serviço. Desde então, ajudaram-nos a lavrar e a arrotear as terras, foram o motor dos transportes, tocaram as noras para que tivéssemos água para beber e para irrigar. Enfim, foram nossos aliados na grande epopeia da civilização do bem-estar de que hoje somos beneficiários. E, no fim da longa jornada de trabalho, ainda nos dão a sua carne como alimento e a sua pele como vestuário. De modo geral, hoje dispensamo-lo do trabalho, mas submetemo-los a ritmos de crescimento insalubre para que a indústria alimentar possa ser rentável. No futuro próximo, pelos vistos, vamos criar animais modificados para que possa haver bancos de órgãos para o cuidado da nossa saúde.

A teologia dá-nos algumas orientações para pensar este assunto. Primeiramente, reconhece o dever de os humanos cuidarem e respeitarem os outros viventes, plantas e animais. Esses viventes precederam-nos na cadeia da evolução e sacrificaram-se para que nós pudéssemos existir; são criaturas divinas e não criaturas humanas. Por isso são credores de respeito e de cuidado. Seguidamente, a moral cristã diz que o ser humano pode servir-se dos animais e das plantas como seu alimento, desde que o faça com temperança e moderação. É-nos permitido abater animais para nosso alimento, tendo o cuidado de não lhe infligir dor desnecessária. Não podemos é fazer deles matéria-prima de uma indústria alimentar desorbitada. Segundo uma opinião bem-fundada, o cérebro da nossa espécie desenvolveu-se por efeito do consumo de proteínas animais. Por isso, não estamos proibidos de adoptar um regime carnívoro. Mesmo assim, podemos talvez esperar que, no futuro, haja forma de obter alimentos de origem não animal, para não sermos tão dependentes dos animais na alimentação.

Num tempo em que uma nova vertente da utilidade dos animais nos apanha de surpresa, ocorre que a nossa reflexão cristã possa dar mais importância à realidade dos viventes não humanos, como contributo para uma ecologia centrada na vida que se realiza de modo diversificado, mas complementar, nas diferentes espécies de viventes.