Numa extensa entrevista ao “La Croix”, o cardeal Jean-Claude Hollerich, que é arcebispo do Luxemburgo, presidente da Comissão das Conferências Episcopais da União Europeia (COMECE) e relator geral do Sínodo dos bispos, fala abertamente sobre questões polémicas na Igreja Católica.
O declínio do número de crentes na Europa, a luta da Igreja para continuar a desempenhar um papel na sociedade ocidental, o debate sobre o celibato sacerdotal e novas visões sobre a sexualidade… O Cardeal Jean-Claude Hollerich, de 63 anos, que lidera a Arquidiocese do Luxemburgo, é presidente da Comissão das Conferências Episcopais da União Europeia (COMECE) e relator geral do Sínodo dos bispos – fala francamente sobre essas e outras questões “quentes” nesta entrevista exclusiva com Loup Besmond de Senneville, do jornal francês “La Croix”.
É um ex-missionário no Japão, jesuíta, arcebispo de Luxemburgo, cardeal… Sempre procurou Deus da mesma maneira?
Quando cheguei ao Japão como jovem sacerdote, foi um grande choque. Naquela altura era um jovem mergulhado no catolicismo popular do Luxemburgo. Com outros jesuítas, cada um de uma formação católica diferente, chegámos com um modelo de catolicismo que todos vimos muito rapidamente não corresponder às expectativas do Japão. Para mim, isso representou uma crise. Tive que deixar de lado toda a piedade que tinha sido a riqueza da minha fé até então e desistir dos caminhos que amava. Fui confrontado com uma escolha: ou renunciar à minha fé porque não consegui encontrar os caminhos que conhecia, ou iniciar uma viagem interior. Escolhi a segunda opção. Antes que pudesse proclamar Deus, tive que me tornar um buscador de Deus. Disse com insistência: “Deus, onde estás? Onde estás, tanto na cultura tradicional, quanto no Japão pós-moderno?”. Quando voltei para a Europa há dez anos, tive que começar de novo. Para ser honesto, pensei que encontraria o catolicismo que havia deixado na minha juventude. Mas esse mundo já não existia. Hoje, nesta Europa secularizada, tenho que fazer a mesma coisa: procurar a Deus.
A Europa voltou a ser hoje uma terra de missão?
Sim, há muito tempo. O Luxemburgo da minha juventude era um pouco como a Irlanda, com grandes procissões, forte piedade popular, etc. Quando eu era criança, todas as crianças iam à igreja. Os meus pais não foram, mas mandavam-me ir, porque era normal fazê-lo. Lembro que na escola uma criança da minha turma não fez a primeira comunhão e isso gerou um escândalo. Agora, o que causa o escândalo é quando uma criança realmente a faz, mas, reflectindo, posso ver que esse passado não foi assim tão glorioso. Eu obviamente não via isso quando era criança, mas percebo agora que já havia muitas falhas e hipocrisias naquela sociedade na altura. Basicamente, as pessoas não acreditavam mais do que acreditam hoje, mesmo que fossem à igreja. Tinham uma espécie de prática cultural dominical, mas não era inspirada na morte e ressurreição de Jesus.
Acha que esse Catolicismo cultural acabou?
Ainda não. Varia em diferentes partes do mundo. Mas estou convencido de que a Covid vai acelerar esse processo. No Luxemburgo, temos um terço a menos de fiéis. Tenho certeza que não vão voltar. Entre eles estão pessoas de certa idade que acharão doloroso voltar à prática religiosa, ir a uma igreja, mas também há aqueles católicos para quem a missa dominical era um ritual importante, dando estabilidade às suas vidas. Para muitos, chamar-se católico ainda é uma espécie de disfarce dotado de uma moral geral. Ajuda-os a acompanhar a sociedade, a serem “bons cristãos”, mas sem definir realmente o que isto significa. Esta era tem que acabar. Devemos agora construir uma Igreja baseada na fé. Sabemos agora que somos e seremos uma minoria. Não devemos ficar surpresos ou tristes com isso. Tenho a doce certeza de que o meu Senhor está presente na Europa.
Não tem dúvidas sobre isso?
Oh, não. Não tenho dúvidas nenhumas. Não é uma pergunta que me persiga. Quando era mais jovem, tinha medo de não O encontrar. Era como se fosse assombrado por esse medo. Tinha que descobrir ou iria abaixo. Agora estou muito mais tranquilo.
É a sabedoria da idade?
Não sei se existe a sabedoria da idade existe (risos). Ficaria feliz se existisse! Mas, no fundo, fazemos sempre as mesmas coisas estúpidas e deparamo-nos sempre com a mesma parede. Pelo menos sabemos que a parede está lá, e que vai doer. Também sei agora que sou apenas um instrumento do Senhor. Existem muitos outros. Esta consciência deixa-me sempre um pouco desconfiado de todos aqueles que dizem ter a fórmula imbatível para anunciar Deus.
Não há receita mágica?
Não. Só existe a humildade do Evangelho.
E quando era mais jovem, acreditava em receitas mágicas?
Sim, claro, acreditava nelas. Mas é uma bela loucura da juventude. Também mostra o entusiasmo dos jovens.
Porque é que a mensagem do Cristianismo ainda é relevante hoje em dia?
Porque as pessoas não mudaram em dois mil anos. Ainda estamos à procura da felicidade e não a encontramos. Ainda temos sede de infinito e esbarramos nos nossos próprios limites. Cometemos injustiças que têm sérias consequências para outras pessoas, a que chamamos de pecado. Mas agora vivemos numa cultura que tende a reprimir o que é humano. Esta cultura de consumo promete satisfazer os desejos humanos, mas não o faz. No entanto, em momentos de crise, de choque, as pessoas percebem que há toda uma série de questões adormecidas nos seus corações. A mensagem do Evangelho é excepcionalmente fresca para responder a esta busca de sentido e felicidade. A mensagem ainda é relevante, mas os mensageiros às vezes aparecem em trajes de outrora, o que não é o melhor serviço para a mensagem em si. É por isso que precisamos de nos adaptar. Não para mudar a mensagem em si, é claro, mas para que ela seja compreendida, mesmo que sejamos nós que a anunciemos. O mundo ainda está à procura, mas não está mais a olhar na nossa direcção, e isso dói. Devemos apresentar a mensagem do Evangelho de tal forma que as pessoas se possam orientar para Cristo.
É precisamente por isso que o Papa Francisco lançou o Sínodo sobre a sinodalidade em Outubro passado, do qual é relator geral. Disse recentemente que não sabe o que vai escrever no relatório?
Tenho de ser eu a ouvir. Se eu fizer muitas propostas, isso desencorajará as pessoas que têm uma opinião diferente. Então são as pessoas que têm que preencher a minha cabeça e as páginas. Isto é um sínodo. Deve ser aberto. Como diz o Papa, é o Espírito Santo que é o mestre de obras. Portanto, devemos também abrir espaço ao Espírito Santo. Esse método é importante hoje porque já não podemos dar-nos por satisfeitos em dar ordens de cima para baixo. Em todas as sociedades, na política, nos negócios, o que conta agora é o trabalho em rede. Esta mudança na tomada de decisão anda de mãos dadas com uma mudança real na civilização, que estamos a enfrentar. E a Igreja, como sempre fez ao longo da sua história, deve adaptar-se a ela. A diferença é que desta vez a mudança na civilização tem uma força sem precedentes. Temos uma teologia que ninguém entenderá daqui a 20 ou 30 anos. Esta civilização terá passado. É por isso que precisamos de uma nova linguagem que deve ser baseada no Evangelho. E toda a Igreja deve participar no desenvolvimento desta nova linguagem: este é o significado do Sínodo.
Como presidente da COMECE, participou num encontro em Roma no início de Outubro com os partidos europeus de direita e centro-direita. Ao sair, o cardeal Pietro Parolin encorajou-os a não considerar o cristianismo como um supermercado em que apenas certos valores podem ser escolhidos. Essa tentação existe entre os políticos?
Sim, claramente. À direita, assumem símbolos cristãos. Gostam de rosários e crucifixos, mas nem sempre isto está ligado ao mistério de Cristo. Isto está relacionado à nossa cultura europeia passada. Querem referir-se a uma cultura para mantê-la. Isto é um uso indevido da religião. À esquerda, também conheço políticos que se dizem cristãos comprometidos, que lutam contra as mudanças climáticas, mas que votam no Parlamento Europeu para tornar o aborto um direito fundamental e limitar a liberdade de consciência dos médicos. Isso também é tomar a religião como um supermercado: pode ser-se democrata-cristão, socialista, ambientalista, etc., e ainda ser cristão. Essa diversidade de formações políticas é de grande benefício para a sociedade. Mas os políticos muitas vezes tendem a manter as suas preferências religiosas privadas. Neste caso, já não é uma religião, mas uma convicção pessoal. A religião requer um espaço público para se expressar.
Mas não é mais difícil para os cristãos envolverem-se na política?
Primeiro, é verdade que há menos cristãos. Em segundo lugar, é verdade que estão cada vez menos envolvidos na política. Vemos isso após cada eleição. Por outro lado, é óbvio que a mensagem dos bispos à sociedade já não está a ser transmitida. Vive-se isto em França há vários anos, é a consequência de sermos uma minoria. Para ajudar as pessoas a entender o que queremos, devemos entrar num longo diálogo com aqueles que já não são cristãos, ou que são apenas cristãos nas periferias. Se temos certas posições, não é por sermos conservadores, mas porque acreditamos que a vida e a pessoa humana devem estar no centro. Para poder dizer isto, acho que precisamos de ter diálogos e amizades com aqueles que tomam decisões ou políticos que pensam de forma diferente. Mesmo que não sejam cristãos, partilhamos com eles uma preocupação honesta de colaborar para o bem da sociedade. Se não queremos viver numa sociedade compartimentada, devemos saber ouvir as histórias uns dos outros.
Isso significa que a Igreja deve desistir de defender as suas ideias?
Não, não se trata disso. Devemos tentar entender o outro, construir pontes com a sociedade. Para falar de antropologia cristã, devemos basear-nos na experiência humana do nosso interlocutor. Porque, embora a antropologia cristã seja maravilhosa, em breve não será compreendida se não mudarmos o nosso método. E de que nos serve falar se não formos ouvidos? Falamos por nós mesmos, para ter certeza de que estamos do lado certo? É para tranquilizar os nossos próprios seguidores? Ou falamos para ser ouvidos?
Quais são as condições para esta escuta?
Em primeiro lugar, humildade. Acho que mesmo que não seja necessariamente consciente, a Igreja tem a imagem de uma instituição que sabe tudo melhor do que as outras. Portanto, precisa de muita humildade, caso contrário não pode entrar em diálogo. Isto também significa que devemos mostrar que queremos aprender com os outros. Aqui está um exemplo: sou totalmente contra o aborto. E, como cristão, não posso ter uma posição diferente. Mas também entendo que há uma preocupação com a dignidade da mulher, e o discurso que tínhamos no passado de oposição às leis do aborto já não é ouvido. Então, que mais podemos fazer para defender a vida? Quando um discurso já não tem peso, não devemos ser obstinados em usá-lo, mas procurar outros caminhos.
Em França, muitos acreditam que a Igreja perdeu grande parte da sua credibilidade por causa dos crimes sexuais cometidos. Como é que se posiciona em relação a essa crise?
Em primeiro lugar, quero dizer que esses abusos são um escândalo. E quando vemos os números do Relatório Sauvé, vemos que não é um lapso de alguns. Há uma falha sistémica em algum lugar que precisa de ser tratada. Não devemos temer os ferimentos que isso nos pode causar, que não são absolutamente nada comparados aos das vítimas. Precisamos, portanto, de ser muito honestos e estar preparados para alguns golpes. Há algumas semanas, eu estava em Portugal, onde estava a celebrar a Missa. Houve um menino lá que, enquanto acolitava a Missa, olhou para mim como se eu fosse o Bom Deus. Pude ver que ele me via como um representante de Deus, o que eu era, de facto, durante a liturgia. Abusar dessas crianças é um crime real. É uma ofensa muito mais grave do que se um professor ou um treinador desportivo cometesse tais actos. O facto de isso ter sido tolerado para proteger a Igreja dói. Nós fechámos os olhos! É quase irreparável. Agora , sobre a sua pergunta: algumas pessoas perderam a confiança. Para recuperá-la, quando possível, é preciso ter grande humildade. Quando se acompanha uma comunidade ou uma pessoa, deve ter-se sempre presente o princípio do respeito absoluto por quem se acompanha. Não posso deixar de lado nem uma pessoa, parece-me óbvio que estas questões estarão na mente e no coração de todos durante o processo sinodal. Precisamos de abraçar a mudança.
Se houver uma falha sistémica, acha que são necessárias mudanças sistémicas?
Obviamente, na minha diocese, como em muitas outras, temos um código de boa conduta que todos devem assinar, sacerdotes e leigos que trabalham para a Igreja. Antes da ordenação, também submetemos os seminaristas a oito sessões psicológicas destinadas a detectar a pedofilia. Estamos a fazer tudo o que podemos, mas não é suficiente. Precisamos de uma Igreja estruturada de tal forma que essas coisas deixem de ser possíveis.
O que é que isso significa?
Se as mulheres e os jovens tivessem mais voz, estas coisas teriam sido descobertas muito mais cedo. Devemos parar de agir como se as mulheres fossem um grupo marginal na Igreja. Elas não estão na periferia da Igreja, elas estão no centro. E se não dermos voz àqueles que estão no centro da Igreja, teremos um grande problema. Não quero ser mais específico: esta pergunta será inevitavelmente feita no Sínodo, em várias culturas, em diversos contextos. Mas as mulheres têm sido demasiado ignoradas. Devemos ouvi-las, como fazemos com o restante do povo de Deus. Os bispos devem ser como pastores que escutam o seu povo. Não é apenas para dizerem: “Sim, eu ouvi, mas não me interessa”. Eles precisam estar no meio do seu rebanho.
Que outras mudanças precisam de acontecer?
A formação do clero deve mudar. Não deve centrar-se apenas na liturgia, embora eu entenda que os seminaristas lhe dêem grande importância. Leigos e mulheres devem ter uma palavra a dizer na formação dos sacerdotes. Formar sacerdotes é um dever de toda a Igreja, por isso toda a Igreja deve acompanhar este passo, com homens e mulheres casados e solteiros. Em segundo lugar, precisamos de mudar nossa maneira de ver a sexualidade. Até agora, tivemos uma visão bastante reprimida da sexualidade. Obviamente, não se trata de dizer às pessoas que podem fazer qualquer coisa ou abolir a moralidade, mas acho que precisamos de dizer que a sexualidade é um dom de Deus. Sabemos disso, mas dizemo-lo? Não tenho certeza. Algumas pessoas atribuem o aumento do abuso à revolução sexual. Penso exactamente o contrário: na minha opinião, os casos mais horríveis ocorreram antes da década de 1970. Nesta área, os padres também precisam de poder falar sobre a sua própria sexualidade e de serem ouvidos se estão a ter problemas em viver o celibato. Eles devem poder falar sobre isso livremente, sem medo de serem repreendidos pelo seu bispo. Quanto aos padres homossexuais, e são muitos, seria bom que pudessem falar com os seus bispos sem que estes os condenassem. Quanto ao celibato e à vida sacerdotal, perguntemos francamente se um padre deve necessariamente ser celibatário. Tenho uma opinião muito favorável ao celibato, mas é indispensável? Na minha diocese, casei diáconos que cumprem maravilhosamente o seu papel diaconal, que fazem homilias através das quais tocam as pessoas com muito mais força do que nós que somos celibatários. Porque não ter padres casados também? Da mesma forma, se um padre já não consegue viver essa solidão, devemos ser capazes de compreendê-lo, não condená-lo. Estou velho, por isso isto já não me diz tanto respeito…
Sentiu a dificuldade de viver essa solidão?
Sim, claro. Em certos momentos da minha vida, foi muito clara. E também é óbvio que todos os padres se apaixonam de vez em quando. A questão é como comportarem-se neste caso. Antes de tudo, é preciso ter a honestidade de admitir isso a si mesmo, e depois agir de tal forma que possa continuar a viver o seu sacerdócio.
(entrevista de Loup Besmond de Senneville, publicada no jornal La Croix International a 24 de Janeiro de 2022 e divulgada pelo Departamento Arquidiocesano da Comunicação Social de Braga)