
Por João Alves Dias
A emoção invade-me quando assisto a um concerto de música clássica e conduz-me a uma introspeção que me leva por caminhos de interioridade e transcendência. Foi o que me aconteceu no dia 1 de dezembro, no ‘Recital de Piano’ que alunos da Academia de Música de Costa Cabral nos ofereceram no Auditório Municipal de Gondomar.
A leveza daqueles dedos tão jovens a levitar sobre o teclado trouxe-me à lembrança o adejar das lavandiscas sobre as leivas das terras lavradas de fresco. E a beleza com que interpretavam obras de Bach levou-me até à “Igreja São Tomás” em Leipzig, famosa por nela ter trabalhado e estar sepultado este famoso compositor alemão. Aí, na memória e na arte, pairavam as sombras da morte. Aqui, numa espécie de contemplação, senti a sua vida transfigurada.
Face a esta força vivífica da música, muitas perguntas me afluíram à mente.
Em busca de respostas, fui ler, no volume V – ‘Da Música’– das “Obras Completas de Eduardo Lourenço”, as reflexões desse ‘gigante do pensamento português’ falecido havia um ano (1/12/2020). Quero, agora, partilhar convosco alguns dos seus apontamentos. Para que possais desfrutar, no silêncio, da profundidade do seu pensamento e da beleza da sua palavra, limitar-me-ei a perguntar.
O que é a arte?
“A Arte é o imerecido beijo da nossa ressurreição, o estranho beijo que a alma adormecida dos homens se dá a si mesma para despertar do encantamento mortal da floresta da vida.” (pag. 117)
E a Música?
“Música – linguagem universal que vai do coração ao coração. Revelação de tudo o que os homens trazem na alma sem o poder exprimir.”(pag. 69)
Que lugar para a emoção na fruição musical?
“Ora nada mais propício do que a Música para justificar o abismo que há entre senti-la e compreendê-la. Sentir é o grau ínfimo da apropriação: é só um ouvir com sentimentos possíveis de prazer, desprazer, deleite ou aborrecimento, em suma, um ouvir gostando ou não gostando.”(pag. 59)
“O céu não será céu se lá não tocar João Sebastião Bach (…) as lágrimas correm sem vergonha na minha face de homem rendido e humilde e o cântico imortal rasga a minha carne até lá onde eu gosto de imaginar que está o mais profundo que me sustenta, com o grito inexplicável do chamamento à única presença que desde a infância eu sei que importa à minha vida.” (pag. 50)
Será a música o limiar do divino?
“Certamente se um dia voltar para Deus a nenhuma outra coisa o deverei senão a estas estradas de uma melancolia lancinante que desde o canto gregoriano até Messiaen devoraram em mim o sentimento da realidade do mundo visível. O que as palavras mesmo sagradas não conseguem a fabulosa arquitectura de um Requiem o alcança misteriosamente (…) Se nada mais ficasse da civilização passada que a música dos Bachs, dos Mozarts, dos Brahms, isso bastaria para que a ideia de Deus fosse imperecível na memória humana.” (pág. 93)
“Através da música não só nos reapropriamos das delícias supostas do paraíso perdido, mas inventamos para ela caminhos que a sua perfeição dispensava e a que a nossa imaginação recorre para ascender de novo a esses céus que nem nos lembrariam, se Bach e os seus émulos não nos construíssem com as suas notas a única escada de Jacob plantada nos nossos corações para iluminar a vida.”(pag.175)
Que bom!…Já o insigne teólogo Hans Urs von Balthasar dizia que a beleza “é a primeira forma de Deus nos atrair”.