
O assunto dos abusos de menores pelo clero não é agradável de tratar. Mas com o começo do trabalho da Comissão Independente, é impossível, por parte da Igreja, continuar a olhar passivamente a evolução dos acontecimentos.
Por Jorge Teixeira da Cunha
A determinação do Papa Francisco em levar até ao fim este processo, não nos pode deixar a fazer de conta que não está nada a acontecer. Não é justo que a Igreja fique simplesmente à espera da conclusão dos trabalhos da Comissão, e esperar que a coisa que esfume por si. Tem de se pôr no terreno e elaborar um programa de reconciliação que passa pela pacificação da memória e pela proposta de um perdão que salve as vítimas e possibilite aos agressores um processo penitencial proporcionado e salvífico também.
Ao nível da Igreja universal, e local, a crise dos abusos ainda não produziu todos os seus efeitos. A nosso ver, nada ficará como dantes, para que a Igreja possa continuar a ter credibilidade e a desempenhar a sua missão. Trata-se de uma crise de dimensões epocais, da qual resultará um novo estádio para a evolução ética da Igreja e da humanidade. De facto, a proclamação da dignidade da infância, que é um elemento introduzido na história pelo cristianismo, chegou a hora de dar os seus frutos.
Não basta deixar morrer os agressores e as vítimas, para que o processo fique concluído. É necessário o processo de reelaboração do passado. A memória do tempo dos abusos é claramente obscurecida pelo poder clerical e é necessário o processo doloroso de a trazer à luz. De facto, o clero beneficiou de um contexto em que a instituição dava cobertura a vidas de ministros sem vocação e a iniquidades como estas. Isso já não é possível nos dias que correm. É necessário, porém, ter em conta que a escassez de memória de ontem se tornou, hoje, de excesso de memória, habilmente manipulada contra a Igreja. Uma e outra coisa têm de ser corrigidas. Para isso, a Igreja tem de ter a coragem de escrever a história, com probidade e com verdade. Por isso, muitos titulares de cargos não poderão ficar descansados. O passado dos abusos esteve à vista de muitos. E muitos procederam como era costume proceder então. Tudo isso é inevitável que venha ao de cima, por ocasião do escrutínio que está em processo.
Além de escrever corajosamente e dolorosamente a história, a Igreja tem de propor um programa de perdão e de reconciliação. É que, na Igreja, não basta a justiça, por muito importante que seja. A justiça penal é imperfeita e sempre permeável a forças estranhas, a defeitos de perspectiva, ao abstractismo da norma universal que pode salvar a lei e fazer morrer a pessoa. Por isso, é necessário o perdão. O perdão é uma dádiva que a Igreja leva no seu seio como uma promessa, como o efeito mais misterioso da graça divina. Para muitos, hoje, o perdão é impossível. Os cristãos não o acham impossível, muito embora o sintam como difícil e laborioso. Como o nosso sistema penal não dá qualquer lugar ao processo terapêutico do perdão, a sua eficácia da reabilitação das pessoas condenadas é quase inexistente. Não pode ser assim na Igreja, a quem foi dado a faculdade de atar e desatar.
Por isso, na hora de se confrontar com o resultado da Comissão Independente, a Igreja tem de estar preparada. Estar preparada é ter pensado e proposto uma pastoral do perdão e da reconciliação como forma da sua nova forma de agir. Chegou a hora de a Igreja ser dom em vez de ser poder, experiência gratuita de sentido, em vez de força e visibilidade. Assim como os seus agentes não se podem continuar a escudar no poder da instituição para seguir vivendo vidas sem sentido, assim a Igreja não pode contar com o seu prestígio institucional para continuar a ter pertinência pública. Um testemunho de humildade institucional vai ser necessário para continuar a ser um sinal credível. Teólogos e pastores, homens e mulheres, com verdadeiro carisma vão ser necessários para desenhar o rosto perdoado da Igreja do porvir.