
Não é comum encontrar poetas nonagenários. Podíamos aplicar-lhes, por contraste, as palavras de Fernando Pessoa a propósito da morte de Mário de Sá Carneiro (1890-1916) ao comentar que “morrem novos os que os deuses amam”, lembrando certamente que o amor dos deuses estava inscrito no reconhecido estro original do poeta que se suicidara.
Por M. Correia Fernandes
De facto os poetas costumam morrer novos, como aconteceu entre nós com Cesário Verde (1855-1886), ou António Nobre (1867-1900) ou o próprio Fernando Pessoa, falecido aos 47 anos. Como para tantos outros artistas (Pergolesi, Mozart, Mendelsshon, Schubert, Van Gogh…) poderíamos perguntar o que viria ainda a ser a sua obra se se prolongassem os seus anos e a capacidade de criação.
Podia ser igualmente verdadeira a adaptação da frase de Pessoa, se aplicada aos poetas: vivem sempre os que os deuses amam, isto é, aqueles em que o espírito se manifestou e tornou imanente.
Vêm estas palavras a propósito de uma edição da revista Humanística e Teológica, da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Porto) que acaba de ser editada em novembro de 2021 (superando a pandemia), com o título Poesia e Pensamento: Fernando Guimarães e Fernando Echevarría.
Além da sua característica comum dos dois poetas, ligados ao Porto, nas suas instituições académicas e de difusão cultural, com colaboração frequente com a Faculdade de Teologia, têm então este dom de serem nonagenários: Fernando Echevarría, nascido em 1929 e recentemente falecido (em 4 de outubro de 2021, aos 92 anos) e Fernando Guimarães, nascido em 1928, na expectativa de completar no próximo 3 de fevereiro 94 anos, efeméride que desde já saudamos. Ambos se abrigam simbolicamente sob o mesmo guarda-chuva da criação poética (aliás sempre associada à reflexão e crítica literária, à filosofia e ao pensamento).
Aqueles que se debruçam nesta publicação sobre o conjunto das suas a sua obra são oito: Álvaro Manuel Machado, Arnaldo Pinho, Arnaldo Saraiva, Diogo Alcoforado, Jorge Teixeira da Cunha, José Júlio Rocha, José Luis Puerto e Maria João Reynaud.
Poesia e pensamento
O primeiro que importa realçar é a ligação estrutural proposta entre Poesia e Pensamento. De facto parece que é entendimento geral de que a poesia vive da emoção e da sensibilidade. António Damásio distingue entre emoção, “uma espécie de concerto de ações para além da mente; e os sentimentos que são a experiência mental que nós temos do que se passa no corpo, a diferença entre aquilo que é mental e aquilo que é comportamental (entrevista a“Fronteiras do Pensamento”, 2015).
Associar a poesia ao pensamento é outra dimensão do humano que importa valorizar. Sabemos que os grandes poetas foram também grandes pensadores e a grande poesia é sempre uma presença do pensamento temperado com a emoção e a sensibilidade. Quantos pensamento profundos nos vieram através da emoção e da sensibilidade!
Ao abordar esta relação entre poesia e pensamento, Humanística e Teológica manifesta a intenção de encontar e verificar nos dois poetas a presença constante evidenciada ao longo da sua escrita nos meandros da criação e expressão poética. É certamente neste sentido que Diogo Alcoforado afirma, a propósito da obra Junto à Pedra, de Fernando Guimarães, “o que permanece é um pensamento marcado pelo culto da liberdade, e do rigor intelectual, e por um entendimento, ou uma possibilidade de entendimento do Mundo edas coisas” (P.19-20).
Outra dimensão, ou conjunto de dimensões, proposta por Jorge Cunha situam a poesia no domínio da “Revelação”, no relacionamente com a dimensão religiosa, ética e moral na análise que faz de passagens dos dois poetas.
Arnaldo Pinho evidencia na criação poética a relação entre ser e verdade, desenvolvendo o tópico da verdade que pertence à essência do ser, citando M.Heidegger, e interroga-se: “para quê poetas? Para fundar o pensamento primeiro e depois fazê-lo remontar ao fundamento, não perdendo as suas sucessivas cristalizações” (p.39-40).
Maria João Reynaud evidencia outro caminho, tanto na escrita de F. Guimarãse como na de Fernando Echevarría: as grandes figuras que povoam o nosso imaginário cultural, vindas da literatura, da pintura, da escultura da música,da aquitectura, da filosofia”, bem como o diálogo comum com o cristianismo e o pensamento cristão.
Arnaldo Saraiva destaca outro dado (a propósito de Fernando Guimarães, mas bem podia aplicar-se também a Echevarría): a contaminação e confluência entre o poeta e o ensaísta. Como é sabido, Fernando Guimarães é autor de um conjunto de ensaios sobre temática literária e as suas correntes de pensamento. Sobressai também nele a presença da outras artes, como a pintura (Miró, Klimt), a música (Monteverdi, Mozart), e essencilamnete a natureza: “É fresca a sombra destas árvores. Também existe na pedra a sua sombra” ou o papel do poeta: “Deixaram ali as folhas abandonadas; não existem sequer. Alguém as vem pensar. (O Anel débil, p.23).
Terminemos com a citação da apresentação do pequno volume, nas palavras de JorgeCunha: “É a escuta da poesia como lugar do divino e como lugar da liberdade. Além da duas fontes primárias, a Escritura e a tradição, a telogia não pode alhear-se das melhores criações do espírito humano, como são a poesia e a literatura em geral”. Também pode ser significativa a referência ao contexto das celebrações do centenário da Revolução de 1820.
Pequeno é o livro: apenas 105 páginas. Mas é rica de sentido a associação entre estes dois poetas pensadores…