
Por M. Correia Fernandes
Vamos cantar as janeiras: uma memória simbólica a José Afonso
Fui à procura de outra coisa, mas como sempre acontece a quem procura, deparei-me com uma referência que é oportuno recordar nos passados dias finais de 2021 em que alguma comunicação social lembrou a obra de José Afonso (1929-1987), promovendo a reedição dos principais dos seus álbuns, que me habituei a conservar desde 1969, e que começaram no que considero o mais inspirador deles todos: os Cantares do Andarilho, com que inaugurou um conjunto antológico.
Estes Cantares do Andarilho são o protótipo da criatividade e da simplicidade: com textos seus, recorrendo a cantos tradicionais cantados como nunca ninguém mais conseguiu superar, e com um acompanhamento de igual simplicidade na originalidade de apenas de uma guitarra, pelo seu companheiro e amigo Rui Pato, lembram o Camões que ele cantava ao recordar as ovelhas e as ervas, contrastando com “e eu das lembranças do meu coração”.
Em 1970 José Afonso foi galardoado pela “Casa da Imprensa” com um prémio especial por ter contribuído para a renovação da música portuguesa. Nessa ocasião escrevi que “poucas vezes tal galardão terá sido atribuído com tanta justiça e mérito”, acrescentando: “senhor de um lirismo de linguagem e de uma expressividade musical rara, conseguindo dar força poética a realidades por vezes tão duras, José Afonso bem merecia que o seu valor fosse reconhecido”. (Voz Portucalense, 16 de maio de 1970).
Importa situar o contexto destas palavras: José Afonso era na altura nome que a comunicação social oficial devia ignorar. O reconhecimento do seu valor era “inconveniente”. Esta capacidade de falar dos problemas humanos e sociais de forma simbólica foi o que permitiu que não tivesse sido silenciada oficialmente a sua voz e que permitiu que ela mantivesse o extraordinário valor da sua poesia e do seu canto. Vieram depois as Cantigas do Maio, o Traz outro amigo também e o Venham mais cinco, onde se manteve esta dimensão, depois superada por formas de expressão explícita e de intervenção, como o belo texto “Se amor não engana”.
Agora que as novas tecnologias permitem uma edição mais sofisticada das suas criações artísticas, importa não esquecer que foi na expressividade poética do universo simbólico que lançou o melhor dos cantos. Vieram depois as formas explícitas de intervenção, e o que eram flores tornou-se em varas e espinhos, perdendo sentido poético em favor de uma dinâmica de intervenção explícita. E o que é explícito desvaloriza o poético. Mas vale a pena revisitar, no contexto de uma liberdade humanizada, sobretudo os seus primeiros álbuns, estas palavras que lembram os Magos, ou ao menos a magia do quotidiano:
Dorme, meu menino, a estrela d’alva
Já a procurei, mas não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será para ti.
Sobre a abstenção nas eleições
Marina Costa Lobo, politóloga e professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, publica um texto em 28 de dezembro de 2021, no diário Público, com o título “A grande sobrestimação da abstenção em Portugal”, que me chamou a atenção e para o qual importa também chamar a atenção especial do leitor.
Em comentários a sucessivas eleições em Portugal, escrevi no semanário Voz Portucalense, repetidas observações sobre a óbvia incorreção dos cadernos eleitorais, o que determina que a “análise” que se faz da abstenção se torne negativamente dogmática. Em 28 de setembro de 2021 escrevia: “importa rever os cadernos eleitorais: como é possível que haja 9,3 milhões de eleitores – maiores de 18 anos – em cerca de 10,4 milhões de cidadãos”. Agora a autora Marina Costa Lobo analisa esse facto com números rigorosos, o que saudamos. Só não entendemos por que motivo as autoridades responsáveis continuaram a usar o número de 9.323.688 cidadãos eleitores das eleições autárquicas de 2021, e o número de 10.821.244 eleitores inscritos para as legislativas 30 de janeiro de 2022, mais 9.808 do em que 2019, portanto mais que toda a população residente em Portugal (segundo o último censo de 2021, é 10 344 802), o que, mesmo tendo conta os eleitores que são residentes no estrangeiro, é um dado absurdo.
O resultado é que os números da abstenção, suposta e divulgada, serão de novo bastante mails altos do que o real.
Escrevi também: “Importa que os cidadãos tomem consciência de que votar não é apenas um direito, mas um dever. O voto não é entre nós legalmente obrigatório, mas é-o cívica e eticamente. As mensagens dos responsáveis não têm posto isto em evidência”.
Com efeito, há montes de apelos ao voto, mas raramente se evidencia este valor ético e cívico do dever.
O sinal de um presépio
Lá nas distâncias de Ribeira de Pena, em que agora o Tâmega se alarga e alaga campos e povoações, numa igreja que anuncia iniciativas para a celebração do centenário da criação da Diocese de Vila Real, em edifício que vem do século XVIII, dedicado a São Salvador, imagem que adorna quer a frontaria barroca quer o altar-mor já visivelmente rococó, a comunidade local edificou frente a esse altar mor um presépio. Coisa natural, porque as imagens dele lembram visual e simbolicamente a realidade salvífica do nascimento de Jesus.
Mas o mais notável é que no lugar da simbologia habitualmente campestre e naturalista que costuma enquadrar os mais tradicionais (o musgo, as ovelhas, as figuras pastoris), brilha uma simbologia histórico-cultural de um querido alcance: uma lareira, em que o fogo virtual é rodeado pelos reais utensílios familiares das cozinhas e das lareiras mais tradicionais daquela região e um pouco, com variações locais, de toda a tradição popular das famílias nortenhas: as panelas para o caldo e as batatas, os tachos do arroz ou dos rojões, a infusa para o vinho, a sertã tosca e mesmo a vassoura de arrumar a cinza.
Se a família de Nazaré instalada em Belém, no espaço que lhes foi cedido por não haver lugar para eles na estalagem, pudesse ter acesso a este quadro, certamente teriam sido menos dolorosas as vivências da parturiente, e haviam de sentir a força da alma do povo nordestino.
E até os anjos e os pastores haveriam de ter cantado uma moda transmontana:
Ó meu Menino Jesus
Descalcinho pelo chão
Vinde aquecer os pezinhos
Dentro do meu coração.
Aqui fica um louvor sentido por visitantes envolvidos num convívio em que o Natal se associa à persistente memória da maternidades e da vida.