Homilia de Natal do bispo do Porto

Publicamos na íntegra a homilia de Natal do bispo do Porto, D. Manuel Linda, pronunciada no Missa celebrada na Catedral do Porto. 

 

O mistério da Encarnação, base da fé e da Igreja

(Homilia do Natal de 2021)

O grande anúncio que, neste dia, percorre o mundo cristão é que, no Seu Filho Jesus, Deus se fez Homem e habitou entre nós. Daqui a pouco, no Credo, como tomada de consciência desta verdade basilar da nossa fé, genufletiremos. Trata-se, de facto, de um mistério fundante, pois sem Encarnação, sem “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”, não haveria Páscoa. Não haveria salvação. Nem Igreja.

Na nossa linguagem eminentemente referencial, típica da mentalidade científica e jornalística, anunciar que Jesus nasceu não provoca particular emoção. Socorremo-nos, pois, da linguagem litúrgica, das orações e do canto, da Sagrada Escritura e de um coração exultante, de gestos e olhares de ternura: tudo isto são formas de exprimir uma alegria interior tão forte que um discurso racionalista não consegue manifestar. Usamos, por isso, o pregão da primeira leitura, quando o profeta anuncia a grande boa notícia da libertação do cativeiro: “O Senhor é a origem da consolação do seu povo […] e todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus”. Verdade sublinhada pelo salmo responsorial.

Os outros textos bíblicos desta Missa de Natal acentuam a forma de operar desta Salvação. O Menino que nos nasceu revela-nos o Pai e aproxima-nos d’Ele. Jesus, é a única e definitiva Palavra de Deus que garante que o Pai nos ama e se preocupa com cada um de nós. Como Palavra de Deus, logicamente, só poderia ser palavra de salvação. Jamais de condenação, à maneira dos profetas da desgraça. Sendo o Verbo de Deus, como se exprime S. João, transmite aos homens a grande notícia ou desígnio do Pai de fazer de nós seus filhos. Por isso, mais tarde, Jesus garantiria: “O meu Pai é também vosso Pai” (Jo 20, 17).

Neste mistério da Encarnação encontram-se implícitas as grandes coordenadas da nossa fé. Primeiro que tudo, há que considerar um movimento descendente: Deus vem ao nosso encontro porque o Seu deleite e alegria é habitar com a humanidade que criou por amor e sustenta com o mesmo amor (cf. Prov 8, 31). A este movimento corresponde um outro, mas ascendente: a pessoa é chamada a subir ao encontro do Amor que se lhe dirige, a abrir-Lhe o coração e deixar que lá faça morada. E tanto O pode aceitar como recusar. É o preço da graça em liberdade, já sublinhado no Evangelho: “Veio ao que era seu, mas os seus não o receberam”. Claro que nem todos assim procedem. Muitos e muitos apostamos n’Ele totalmente. Sem exclusões e até ao martírio. O mesmo Evangelho ressalta os efeitos da abertura do coração a esta Luz: “Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. É o movimento comunitário, gerado a partir da seiva fértil dos que se enxertaram no Senhor pela fé e pelo batismo.

Caros cristãos, os mais pessimistas dizem que os que recusam a Luz predominam largamente sobre os que a aceitam. Há motivos de preocupação, sem dúvida. E há infantilidades ridículas, como aquela de se pretender apagar a história com a não pronúncia do nome “Natal” ou excluir da simbólica das nossas cidades tudo o que tenha a ver com o presépio. Porém, são também inúmeras as oportunidades que este momento encerra. Os pulmões anseiam por respirar. A asfixia deve ser dos sofrimentos mais terríveis. E, hoje, o nosso mundo asfixia por falta de uma verdade mobilizadora e a sociedade fratura-se à base de um liberalismo individual e materialístico. É esta a nossa hora! É a hora da fé. É a hora de, em contexto sinodal, discernir o que o Espírito Santo pede à Igreja para ser mais fiel ao plano original do seu Fundador e se tornar instrumento de missão e de evangelização ou de resposta à carência de sentido deste momento.

Para isto, creio ser necessário revalorizar três âmbitos que se situam bem ao centro da nossa fé no mistério do Natal. Primeiro, que o Verbo de Deus se fez história para que a história se nutra mais da vida divina. Depois, que Jesus Cristo é o centro dessa história e que esta não se constrói do presente para o passado, mas no rumo que o Messias lhe inculcou, ou seja, um futuro não repetidor das tragédias e desumanidades já experimentadas. Finalmente, que a história tem sentido entusiasmante e belo, não pelo poder das nossas realizações técnicas, sempre falíveis, mas porque o seu Autor lhe inculcou a direção de nos sentirmos filhos do Pai comum e, por conseguinte, de edificadores da fraternidade universal.

O Natal é, pois, um dom e uma tarefa. É o grande dom da ternura de Deus que nos ama e faz-se próximo de cada um de nós ao ponto de assumir a nossa natureza, dores e ânsias. Mas é também tarefa de realizarmos a verdadeira experiência de Deus até podermos dizer como o Evangelho: “Nós vimos a sua glória”. E é ainda tarefa de, no Filho, construirmos intimidade com o Pai, já que “a Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer”. Ser Igreja passa por aqui.

A todos, feliz Natal. Mas a minha mente dirige-se, especialmente, a quantos experimentam mais agudamente as debilidades inerentes à nossa natureza, como o Menino as experimentou, quer no presépio de Belém, quer durante a vida e no Calvário: hospitalizados e detidos, doentes e isolados, desanimados e tristes, desavindos e os que não puderam reunir a família, sós e abandonados, pobres e desempregados, sem-abrigo e marginalizados, migrantes e refugiados, enfim, quantos suportamos a angústia desta pandemia que nos faz sofrer, mas não pode roubar a esperança. Tenham todos a certeza de que o Senhor Jesus não desconhece nada do que é humano e encarnou para estar ao nosso lado e partilhar as nossas dores. Ele dá-nos a mão para nos fazer levantar e um ombro de apoio para não mais permanecermos prostrados no caminho. Aproveitemos e apoiemo-nos no Salvador.

Feliz Natal.

+ Manuel Linda