
Com a Carta Apostólica Motu proprio Magnum Principium, de 17 de setembro de 2017, o Papa Francisco superou decididamente as restrições à competência das Conferências Episcopais, em matéria de tradução dos livros litúrgicos, impostas pela instrução Liturgiam authenticam de 2001.
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
E, então, os trabalhos de preparação da nova edição do Missal retomaram com novos horizontes, embora sem reverter todo o trabalho feito com os critérios anteriores, e culminaram na aprovação por parte da Conferência Episcopal Portuguesa em 19 de novembro de 2019. Os nossos Bispos mantiveram o acordo com a Conferência Episcopal do Brasil no tocante às formulas sacramentais e aos diálogos do Ordinário da Missa: manutenção de «por todos» nas palavras sobre o cálice e da resposta «Ele está no meio de nós». E o Missal seguiu para Roma, pendente da aprovação final da Sé Apostólica.
Mas a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos [= CCDDS] não foi tão célere na adequação dos seus procedimentos à nova orientação pontifícia (e teve até alguma dificuldade em fazê-lo, como é patente na carta do Papa Francisco de 15 de outubro de 2017 ao então prefeito da CCDDS, card. Robert Sarah). Aliás, a regulamentação dos procedimentos a seguir para a confirmatio e recognitio dos livros litúrgicos aprovados pelas Conferências Episcopais só foi publicada em Decreto da mesma CCDDS em 22 de outubro de 2021. Consequentemente o nosso Missal ficou no «limbo». Até que em 8 de janeiro de 2021, o Papa Francisco recebeu em audiência a atual presidência da Conferência Episcopal Portuguesa e validou pessoalmente a tradução das formulas sacramentais e dos diálogos do Ordinário da Missa, superando, assim, o impasse. Desde então trabalhou-se nas revisões finais até que de Roma veio o Decreto de aprovação, com a data de 13 de outubro de 2021.
Se a tradução das palavras do Senhor na Narração da Instituição se manteve intacta, o mesmo não aconteceu na parte narrativa que as enquadra. Neste contexto, o verbo «benedicere» passa a ser traduzido por «bendizer». Dirigindo-se a Deus Pai, o presidente da celebração eucarística assim narrará: «O Senhor tomou o pão… e dando graças Vos bendisse. … tomou este sagrado cálice …, dando graças Vos bendisse…» (OE I; o mesmo nas OE III, IV, etc.). Esta alteração prende-se com a riqueza da língua portuguesa que dispõe de três verbos para traduzir o latino «benedicere», cada qual com matizes específicos: bendizer (a «bênção ascendente», dirigida a Deus), abençoar (a «bênção descendente», normalmente invocada sobre pessoas, mas não só) e benzer (a «bênção descendente», normalmente invocada sobre animais ou coisas).
Na tradução até agora em uso, ao ouvir que Jesus «abençoou» o pão/cálice, muitos fiéis ficariam com a persuasão de que o pão ou o cálice eram «abençoados/benzidos». Essa sensação era reforçada pela memória do gesto que até à reforma litúrgica acompanhava a palavra benedixit: o sacerdote segurava a espécie com a mão esquerda e traçava com a direita o sinal da cruz sobre ela. Mas, hoje, a exegese crítica diz-nos que Jesus não abençoou/benzeu as espécies, mas antes dirigiu ao Pai uma berakah ou oração de bênção: «bendisse-o».
Assim procedia e procede o chefe de mesa (pai de família, mestre de discípulos) em qualquer refeição mas especialmente na refeição mais solene dos sábados e das festas. Tomando a pão nas suas mãos, no início da refeição, o chefe de mesa dizia: «Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que fazes produzir o pão à terra» (Antologia Litúrgica 56). A «bênção» (eulogia em grego, segundo Mt e Mc) que Jesus pronunciou deve ter tido um conteúdo semelhante. Seguia-se a fração do pão e a sua distribuição pelos comensais, que na Ceia Pascal era acompanhada de palavras alusivas ao pão da amargura que os antepassados comeram no Egito, e que na última Ceia, antes de ser preso, Jesus acompanhou com palavras inéditas, que hoje continuamos a ouvir na celebração da Ceia do Senhor: «Isto é o meu Corpo…». Seguia-se a refeição propriamente dita, no final da qual o chefe de mesa, tomando um cálice com vinho, fazia uma oração de bênção mais articulada (a «Birkat Há-Mazon», que os textos gregos do NT referem como eucharistia).
De modo significativo, o Missal Romano Italiano traduz «gratias agens benedixit» com «rese grazie con la preghiera di benedizione» (deu graças com a oração de bênção). Dispondo a nossa língua do verbo «bendizer» para significar a oração de bênção dirigida a Deus, os nossos bispos optaram por esta tradução mais sintética.