Uma questão de nomes, uma questão de mentalidades

1. Chegaram até nós ecos de uma proposta de se substituírem em França os nomes das Férias do Natal (congé de No­­el) ou de Todos os Santos (la Toussaint), ou da Páscoa, por nomes como “Congé d’Hiver”, de Outono ou da Primavera, para afastar a referência aos acontecimentos cristãos ou bíblicos nas festas tradicionais, até com o argumento de que os muçulmanos não utilizam o mesmo critério para designação das suas festas.

Por M. Correia Fernandes

Interessante fenómeno é este, de negar a história e a tradição. Esta pretensão de “desconfessionalizar” os nomes das suspensões lectivas seria uma forma de reforçar a neutralidade do Estado, afastando os ritmos escolares do calendário religioso pela ignorância destes.

Uma leitura desta proposta leva-nos a afirmar que não se trata de surgir ou não numa sociedade laica, porque uma sociedade laica respeita o sentido da História. Trata-se de uma proposta anti-cultural eivada daquela ignorância que a pretensão da novidade sempre engendra. Uma tal mentalidade contra a cultura e a arte levaria à destruição das catedrais da França (que sempre são referência e embelezam as imagens da Volta ciclista à França) ou dos museus das grandes e pequenas cidades ou dos símbolos dos mais notáveis antepassados da sua tradição cultural. Noutra ordem de ideias, poderia levar à destruição das grandes mesquitas ou dos templos hindus, ou Templo do Sol na China. Essa mentalidade teria levado à destruição das fabulosas igrejas que permanecem no Kremlim de Moscovo, ou da mesquita de Córdova, um dos mais notáveis monumentos de Espanha. Por isso se deve classificar como uma atitude e mentalidade contra a cultura, os valores históricos e anti-humanista.

Tudo isto tem que ver com a velha questão das relações entre Fé e ação política. Ocorre-me agora uma entrevista publicada em 1979 na Voz Portucalense, que tive a honra de obter de Mons. Riobé, que foi Bispo de Orléans e figura interveniente em favor dos povos das sociedades mais desfavorecidas, ou da condenação das ameaças da bomba atómica (de que então se falava), ou sobre a tortura nessa altura conhecida em países da América Latina, em que ele afirma: “Não podemos ser cristãos e neutros sem trair os desígnios de Deus sobre o Mundo”, e que “é um dever do Bispo fazer ressoar a sua consciência os apelos e as angústias da humanidade” (Voz Portucalense, 23 de agosto de 1979).

O certo é que a mentalidade subjacente a estas atitudes de um laicismo mal entendido era já problema levantado nessa época, em que se formulava, a propósito de um discurso do recém-eleito Papa João Paulo II, esta questão:  “A Europa, continente de missão”? Aliás, lembro que lá pelos anos de 1960 era tema frequente a interrogação “A França, país de missão”?, que deu origem a um livro publicado pelas “Editions du Cerf” em Paris.

Lembrava João Paulo II, nesse discurso ao Simpósio dos Bispos da Europa, que, em tempos de ecumenismo então emergente, o tempo deveria ser de colaboração fraterna, acrescentando esta afirmação, que parece dita hoje, em 2022, a propósito da proposta atrás referida: “Talvez em nenhum outro lugar como no nosso continente se delineiem com tanta limpidez as correntes da negação da religião, as correntes da “morte de Deus”, da secularização programada e do organizado ateísmo militante”, propondo “examinar tudo isto segundo critérios histórico-sociais, o critério dos “sinais dos tempos”, de que falou o Vaticano II. Lembrou também que a missão da Igreja está sempre voltada para o futuro, tanto para o futuro escatológico de que estamos certos, como para o futuro histórico de que podemos estar humanamente incertos.

Não trazem portanto grande novidade estas propostas hodiernas. No entanto, a palavra do Evangelho não está acorrentada, apesar de todas as perseguições ideológicas dos dias de hoje.

2.Entramos na proximidade das celebrações natalícias. As árvores do Natal das avenidas ou praças não podem substituir o sentido do presépio. Jesus nasceu em tempos de convulsões e de dramas. Vivemos outras convulsões e outros dramas. Não podemos no entanto perder o espírito de Natal: o sentido da Justiça (palavra assinalada na liturgia deste tempo) e do espírito solidário e fraterno e de justiça social proclamado pela voz de João Batista. Há muitos gestos bonitos, mas importa fomentar a política da presença e da equidade. Que neste tempo possam encontrar-se formas de realizar um “mundo repovoado de fraternidade”, na palavra de Miguel Torga.

Esse mundo deve encontrar-se por exemplo na repartição das vacinas para os países de África, no acolhimento os refugiados, na valorização dos salários mais pobres, no exercício de uma Justiça célere, numa cultura aberta ao equilíbrio humano, numa educação com valores, no respeito pela vida. Que são mensagens do Natal.