
Acabo de acolher com algum sobressalto, até porque chegou tendo já percorrido outros caminhos postais, dois livros de José Rui Teixeira: um deste mesmo ano de 2021, do acabado mês de novembro, onde a poesia assume o título de Como Ofício, e é editado por nova editora denominada, clássica e latinamente “Officium Lectionis”. Outro é Vestigia Dei: uma leitura teotopológica da literatura portuguesa.
Por M. Correia Fernandes
As palavras dos poetas são sempre palavras de íntimo e de mistério. Formas de viver e expressão de vivências pessoais e intransmissíveis, que nascem da ânsia de as transmitir. Ou, no dizer do autor, “a poesia é sempre um lugar de encontro”.
Como um Ofício é constituído por um conjunto de mais de centena e meia de poemas, datados desde 2003-2004 até 2021. Trata-se de um longo percurso, organizado em dois conjuntos (Diáspora e Antípoda), onde outras linhas de leitura percorrem temas orientadores para a leitura, cujo sentido conduz o leitor à interpretação e vivência da construção poética: Para morrer, O Fogo e outros utensílios da luz, Antípoda, Equinócio de Outono, Oráculo, Ataúde, Distúrbio do sono, Óbice, Ângulo Morto. Dentro destes se movem outros ângulos de leitura: Os lugares do Medo, Ainda, In un’altra vita, Quando o Verão acabar, A tuba e o mocho. Memento mori, Apontamento [sobre oo declive da consciência, Crisálida, Escorço, Via dei Gigli d’Oro, Santa Maria della Pace, Un enterrement à Ornans, Terracota, Vórtice, Eclipse , Asturias, San Miniato al Monte, Maier Israel Karas, Díptico, Litania. É mesmo com esta Litania que se conclui o conjunto dos poemas, de que é especialmente significativo: Perdemos um lugar para o silêncio. Veio a morte e ainda havia palavras… Só as palavras sobrevivem quando perdemos um lugar para o silêncio.
Há dias ouvíamos, por entre os livros da formosa Biblioteca do Seminário Maior do Porto, a palavra de alguém que exaltava o silêncio, porque ele induzia a escuta, a sua beleza e sacralidade, era um modo de olharmos Deus que habita no coração, a busca de caminhar dentro de nós mesmos (Rosa Margarida Moreira).
Bem se poderia acrescentar, deste livro, que o silêncio “inunda casualmente as planícies e amacia o trigo”. Eis como também há universos que nos conduzem ao silêncio: as palavras criadoras, palavras de poeta que ensinam a soletrar o mundo e a vida, o “informe mundo onde há a vida”, como em seu silêncio olhava F. Pessoa.
Mas voltemos ao trabalho poético de José Rui Teixeira. O título “Como um ofício” interpreta a poesia como elemento que trabalha e é trabalhado para vivência e intervenção da pessoa, como podemos soletrar neste poema, em que “A morte é o sétimo lugar do medo e nunca me esqueço que somos coisas que morrem” (p. 33). A isto se contrapõe: “Trago o silêncio para dentro como um ofício, porque ainda não sei dizer o Verbo que no princípio criou todas as coisas” (p. 366).
Nestes poemas encontram-se a natureza, os espaços, as viagens que inspiram, a passagem do ver ao pensar e sentir, como dizia também Fernando Pessoa: tudo o que penso sinto, ou se quisermos o inverso, tudo o que sinto penso. É esta a inefável dita do poeta, que consiste em nunca estar sempre onde está, porque a sua mente deambula os mundos, sabe ver as pessoas nas coisas e sabe descobrir a presença do infinito no esvoaçar de um pássaro. Por isso, este como outros livros de poemas é sempre autobiográfico.
Uma leitura teotopológica da literatura portuguesa
Lembrava José Rui Teixeira em mensagem que tinha criado em 2018 “os conceitos/neologismos teotopia e teotopologia”. Inscreve-se nestes conceitos o título do seu livro, editado em 2019 por edições Cosmorama, Vestigia Dei: Uma leitura teotopológica da literatura portuguesa.
O nome teotopia, composto de Theo+topos traduz literalmente “lugar de Deus”, enquanto o termo teotopologia acrescenta mais um sentido, o de logos, palavra, com o subsequente sentido de estudo e análise. Lembra-se que com esse tema a cátedra que dirige na Universidade Católica (Porto) com o título “Poesia e Transcendência” se realizou há dias o 2.º encontro em que foi homenageada Sophia de Mello Breyner (VP, 10 Nov. 2021)
O presente livro Vestigia Dei (traduzindo vestígios, ou sinais), lembrando uma antologia sobre Deus na poesia portuguesa (ed. Verbo), em que os autores (J. Tolentino de Mendonça e Pedro Mexia) procuram explicitar “Deus como interrogação na poesia portuguesa”, sugeriu a José Rui Teixeira uma “reflexão sobre o “lugar de Deus” (teotopia), já que a poesia pode ser um “lugar”: “lugar de interseções e interações, convergências e dispersões, encontros e desencontros”.
O método seguido pelo autor é constituído por um conjunto de sugestões inspiradas em poemas de Ruy Belo (1933-1978), retirados de “Todos os poemas”, de que destacamos “Por muitos rostos gestos longes dispersado”, “mesmo ao falar de Deus eu me esqueço de Deus”, “dou caça um por um aos meus fantasmas”, “O sol escureceu e não se ouvis a sua voz”, “é muito triste andar por entre Deus ausente”, “Oh que difícil não é criar um homem para Deus”, “Agora nenhum gesto nesse alguém começa ou morre”, “o melhor sítio para saber qualquer coisa é a vida”, “aqui só pode ser a casa de deus”.
Em torno destas versos se desenvolvem as reflexões temáticas (ou topológicas) da abordagem da presença de Deus nas palavras humanas, de que podem sobressair temas como “uma terra de poetas e um povo de suicidas” (lembrando Unamuno), ou o mito do poeta romântico, ou a contextualização histórico-cultural dos diversos tempos.
Aqui se recordam os grandes nomes da poesia portuguesa (Camões, Antero ou Pessoa), mas igualmente Gomes Leal, ou Afonso Lopes Vieira, para além das numerosas referências a mestres da poesia universal, como Bauadelaire, Rilke, Holderin ou Claudel.
Por isto se pode deduzir que este pequeno livro (79 p.) acaba por constituir também um percurso temático assuntos que emergem na poesia portuguesa, assumindo assim um papel mais global da sua temática condutora e interligada. Os temas não existem sós, mas sempre em relação.