Os passos e os equívocos da democracia

Entramos inesperadamente num novo ciclo eleitoral. Inesperadamente porque estávamos a meio de uma legislatura e tudo devia fazer supor que assim continuaríamos, libertos da convicção de que quanto mais eleições mais democracia. Ora não pode ser esse o caminho: a questão não é a quantidade mas a qualidade. A da democracia desta vez foi suplantada pela quantidade de eleições.

Por M. Correia Fernandes

Para que os actos eleitorais possam ser expressão da “vontade popular”, devem respeitar as suas regras e o equilíbrio do seu exercício. O excesso de eleições promove o excesso de forças (ou fraquezas) políticas. É o que se tem verificado entre nós e na generalidade dos países europeus: como há muitas eleições, importa experimentar a possibilidade de novas propostas que induzem novos interesses de poder.

Ora as propostas políticas situam-se tradicionalmente em três campos; a chamada direita, em que impera o domínio do autoritarismo, ou de minorias iluminadas ou de exaltação da livre iniciativa; o centro, em que o elemento social – social democracia ou socialismo democrático – que procuram sujeitar a livre iniciativa a regras mais amplas do bem comum; e a esquerda, em que o elemento popular, o chamado poder popular engendra grupos em que o poder se transforma em domínio por minorias instaladas.

Esta é uma visão simplificada e superficial do espectro político em ordem à governação dos Estados, mas que corresponde aos conceitos habitualmente veiculados sobre o assunto.

Os partidos tradicionais apresentam propostas que se inscrevem em qualquer destes espaços, mas todos eles apresentam um nome e um programa inserido neste universo: os conceitos de democrático e social são definidos, a social democracia está definida, o ideal comunista (nas suas diversas formas ou fórmulas) está definido, o ideal liberal assume caminhos de controlos pessoais do poder.

Têm surgido ultimamente outras designações que extravasam estas categorias tradicionais. É o caso de nomenclaturas como Podemos, Ciudadanos e Vox em Espanha, Frente Nacional em França, Verdes na Alemanha e o recente Chega em Portugal, para além de uma ideologia sempre aberta como é Pessoas, animais e natureza.

Sempre me fez confusão esta designação de Chega como ideal de um partido político. O que significa “chega” como ideário de um partido? O que é que chega?

O seu nome não define nenhuma ideologia política, não se afirma pela proposta positiva mas apenas pela oposição a outras forças existentes. A linguagem que lhe temos ouvido é geralmente a linguagem da destruição e da confrontação, esta intenção de se opor aos demais. Como esta definição de Chega, e melhor que ela, poderíamos ter com maior razão uma designação de Falta. Mas esta linguagem do faltar é sempre verdadeira e universal. Há sempre algo ou alguém que nos falta. Seria pois de propor também uma força política que tivesse por intenção denunciar o que falta: teria mais e melhor conteúdo do que o Chega: já o José Afonso de tinha dado conta disso mesmo: O que faz falta é acordar, avisar, animar, libertar, dar poder. Isto tinha um sentido; dizer chega apenas tem o sentido negativo de se contrapor a tudo. Não traduz ideologia, nem projeto, nem novidade, nem novas perspetivas: apenas o supor que as outras forças já estão a mais.

É este um caminho perigoso, porque consiste em capitalizar o descontentamento, que é a forma mais imediata e interesseira da política. E a verdade é que tal discurso acolhe os descontentes, não porque lhe traga qualquer motivo de contentamento ou quaisquer perspetivas de desenvolvimento e de construção, mas apenas a rejeição do que está, o que constitui caminho de destruição.

Propor um caminho destes para a sociedade é um caminho suicidário para ela. Embora possa trazer vantagens a que o lança para a liça política.

Que esta proposta, ou ausência dela, tenha vindo a merecer a atenção e até o apoio de uma parte importante da população não pode senão tornar-se um motivo de preocupação cívica. Importa que as forças sociais analisem este acontecimento, que não se tem manifestado muito como ponto de reflexão dos comentadores. Nem dos próprios partidos políticos, que não se têm empenhado em contrapor à destruição a construção de propostas mais equilibradas e viáveis.

Seja-me permitido neste contexto o aduzir a opinião de Manuel Antunes: “Por mais «artística» ou «científica» que a política se proclame, nunca ela poderá prescindir da dimensão moral. A actividade humana englobante… à política não é consentido apresentar-se como totalmente alheia ao universo ético. Mesmo quando o nega não deixa de o afirmar… Actividade humana, a política tem como qualquer outra actividade consciente e livre uma radical exigência de verdade, de unidade e de bondade. Pode esta exigência ser iludida no agir prático, ela permanece contudo no íntimo dos indivíduos como no seio das comunidades. No limite é sempre perigoso comportar-se como se ela não existisse… Hoje, mais que no passado, o grande perigo que ameaça a subversão ética pela política é a manipulação”. (Manuel Antunes, Enc. Verbo).

A esta manipulação se vem chamando hoje “populismo”, palavra que subverte o sentido do povo como agente de qualquer sentido democrático.

Não sabemos se haverá um regime político óptimo. Mas em todos os regimes ou propostas políticas o caminho da honestidade intelectual e moral não pode ser ultrapassado, em nome de intuitos ou interesses. A grandeza da sociedade humana está em exercer e merecer o respeito de todos.