O mundo de hoje confronta-nos com dramas inesperados: a vivência da pandemia (já houve tantas outras pandemias hoje esquecidas, por causa da agora vivida), os fenómenos naturais como o vulcão de La Palma, que nos fazem esquecer tantos outros fenómenos idênticos ao longo da história da Humanidade – e que dizer da história da terra), o drama do chamado aquecimento global e as suas incidências mais ou menos dramatizadas, e sobretudo o grande fenómeno humano ou desumano, que os poderes esquecem ao reunir assembleias: o da pobreza e o da distanciação cada vez mais evidente entre um exibicionismo enlouquecido dos ricos e a situação desastrosa e desumana dos pobres.
Por M. Correia Fernandes
É esse universo de problemas que evidencia o último livro de Anselmo Borges, que acaba de ser publicado, neste novembro de 2021: O Mundo e a Igreja: que futuro, em edição da Gradiva, com um prefácio extenso de Maria de Belém Roseira (11 páginas) e um posfácio de Paulo Rangel (16 páginas), duas figuras conhecidas e mediáticas, socialmente relevantes, para além de um desenho da capa por Eduardo Souto Moura. Esclareceu o autor que o posfácio de Paulo Rangel, com o título “Estar no mundo e estar com o mundo” foi escrito antes da relevância política do autor pela candidatura à liderança do Partido Social Democrata, coisa que é de somenos importância, dada a pertinência do conteúdo do texto.
Alguns temas
Trata-se de um volume de quase meio milhar de páginas (476), em que se percorrem caminhos de ampla relevância humana, teológica, cultural, religiosa e social. Pode aplicar-se a este conjunto a frase de Terêncio (nihil humani a me alienum puto): de facto os grandes problemas do universo complexo das propostas e dos dramas do relacionamento da Igreja com o mundo, o atual e o do passado, e talvez o do futuro, encontram-se abordados neste universo de textos escritos em circunstâncias diversas, desde a colaboração habitual do autor no Diário de Notícias, até conferências e comunicações proferidas em múltiplas circunstâncias. Encontramos reflexões sobre Direitos e deveres humanos, sobre as circunstâncias atuais, como a pandemia, a educação, a ecologia, a Religião e a espiritualidade, “o ateísmo libertino”, as grandes feridas do nosso tempo, o trabalho e a festa…
Outra dimensão original da abordagem do autor é o relacionamento entre personalidades conhecidas da nossa sociedade, ditas “mediáticas” ou “políticas”, de escritores e pensadores e o seu entendimento de Deus, como é o caso de Mário Soares, José Saramago, Eduardo Lourenço, Agustina e mesmo António Nobre. Presentes igualmente os grandes teólogos recentemente falecidos, como Johann Baptist Metz (“um dos maiores teólogos do século XX, discípulo da Karl Rahner”), Hans Küng, de quem apresenta uma conversa com ele mantida. Curioso que o pensamento e ação destes autores seja abordado no capítulo “O sofrimento, a morte de Deus”.
Os leitores da colaboração de Anselmo Borges no Diário de Notícias conhecem a sua especial admiração que tem vindo a manifestar pela figura e ação do Papa Francisco, começando por uma reflexão “De Ratzinger a Francisco”, em que salienta a passagem da mensagem “Deus é Amor” a uma “igreja em rede”, Igreja Sinodal, “Gigantesco arquipélago que cubra a face da terra”, no dizer do citado sociólogo Javier Elzo. Lembra ideias e proposta do Papa Francisco sobre os grandes temas que introduziu nas suas mensagens: a ecologia, o casamento e sentido da sexualidade, a Igreja e a alegria, o diálogo ecuménico e inter-religioso, a Igreja e o valor social da política. Recorrendo a entrevistas divulgadas por vários jornalistas, analisa como o Papa se confessa sobre a sua ação e o seu relacionamento com os dramas humanos, as migrações, a geopolítica, o relacionamento com o islamismo.
O último capítulo do livro lança pistas de reflexão para “Uma Igreja Outra”. São questões complexas e controversas, como o papel da mulher, a Igreja e o sexo, os abusos de menores, o celibato dos padres, para concluir “Tudo e todos interligados, Esperança e futuro absoluto”.
Difíceis são os caminhos!
Ideias de Maria de Belém Roseira e Paulo Rangel
“A argúcia da análise, o cruzamento de informação e de saberes habilitam-no ao desenvolvimento sustentado de teses lúcidas, arrojadas e interpelantes… Este livro permite-nos, ainda, compreender a dureza da luta travada pelo Papa Francisco na reconfiguração de uma Igreja com tolerância zero relativamente à pedofilia e também à corrupção, para recuperar a sua missão de construção da justiça, da fraternidade e da verdade” (M. de Belém).
“Por toda a obra perpassam dois espaços e dois tempos: a dimensão pessoal… e a conversão comunitária, que há-de ser repto para a política, a economia e a cultura. Trata-se por isso de um livro de diálogo com a Igreja e o Mundo, o Ideal e a incapacidade de o conseguir… Quando olho para o Vaticano e para a sua actuação internacional… vejo uma total consonância com o espírito evangélico e com a preocupação com os destinos da Humanidade no seu todo. São incontáveis os exemplos da atuação benigna e benfazeja das missões diplomáticas da Santa Sé e são deveras corajosas as tomadas de posição, mesmo contra as opções de política internacional das maiores potências” (Paulo Rangel).
Das numerosas obras de Anselmo Borges, assinalamos Janela do (in)visível, Janela do (in)finito, Religião e Diálogo inter-religioso, Corpo e Transcendência, Deus e o Sentimento da existência, Quem foi/Quem é Jesus Cristo, Deus ainda tem futuro?, Francisco – Desafios à Igreja e ao Mundo. Nota-se assim que o autor coloca a suas temáticas em questões fronteira, analisadas sempre de primas diversos, com saltos qualitativos entre heterodoxia e ortodoxia, entre o pensamento teológico e o pensamento laico e mesmo hostil, entre a mensagem bíblica e evangélica e as suas potenciais transgressões, entre o ideal e os dramas da vida humana.
Por tudo isto, O Mundo e a Igreja: Que futuro? pode tornar-se uma leitura enriquecedora, como sugerem quer a prefaciadora quer o posfaciador, leitores cuidadosos e interpelantes.