“Negros e outras mercadorias”

Foto: Rui Saraiva

Novidades antigas.

Nos frequentes, praticamente semanais, relatórios, enviados pelo núncio apostólico do papa em Lisboa ao Secretário de Estado do Vaticano, choca ler expressões como na carta de Mons.

Por Carlos Moreira Azevedo

Bispo e delegado do Conselho Pontifício da Cultura

Fabio Biondi de 15-05-1593: “chegaram oito barcos do Brasil e São Tomé carregados de açúcar, de negros e outras mercadorias” ou, passado um século, no relatório de 26 de agosto de 1680: “Chegou de Cabo Verde uma nave carregada de negros e outras mercadorias daquelas partes” (AAV, SS Portogallo 36, ff. 300-300v). E logo no ano seguinte, a 11 de agosto, repete que de Cabo Verde chegaram: “naves com as costumadas mercadorias daquelas partes… traz muitos negros escravos” (AAV, SS Portogallo 37, f. 204-204v). Os negros africanos vinham substituir os nativos do Brasil na produção de açúcar, café, algodão, tabaco. Puro mercantilismo que perdurou até meados do século XIX.

Esta espantosa insensibilidade ao regime da escravatura, reconhecido como costume de rotina, durou séculos, esquecendo a revolução evangélica à fraternidade universal.

O tema da escravatura e do tráfico de pessoas não perdeu atualidade porque o ser humano é atravessado pela tentação de subjugar outros aos seus interesses e serviços. Aliás, a degradação do sistema escravista era pré-existente entre africanos, antes da chegada dos europeus que potenciaram o mercado, sobretudo os portugueses. Reunidos nos fortes do litoral pelos africanos, os escravos seriam embarcados para as Américas. A nobreza africana enriquecia seus reinos com esse comércio de pessoas. Também entre os índios do Brasil havia o regime escravista, mas não lhes tinha chegado a Boa-nova de Jesus.  A degradação da humanidade infelizmente repete-se, como ainda acontece vergonhosamente na Líbia e não só.

Também encontramos notícias dos esforços por libertar escravos, mas aqui por serem cristãos, sob domínio muçulmano. Devem ser considerados como prisioneiros de guerra a resgatar. A ação dos trinitários, congregação com especial vocação na redenção dos cativos, foi relevante. Calcula-se que entre 1558 e 1778 foram resgatadas mais de sete mil pessoas. Dou conta apenas dos dados recolhidos por mim no Arquivo. O núncio Giuseppe Firrao informa que em 1726 houve libertação de escravos (ANL 83, f. 273 – 27-08-1726). Os padres trinitários expedidos para resgatar escravos portugueses em Marrocos enviam notícias para a corte. Chegaram e estão com dificuldades. Por cinco jesuítas pedem 50.000 cruzados (ANL 90, f. 98v -19-04-1735). Um cruzado de prata equivalia a 480 réis.

Conserva-se no Arquivo Vaticano a Relação dos cativos que por ordem del Rey… Lisboa Ocidental: A. Isidoro da Fonseca, 1735. 7 p. (BNP H.G. 4552/28ª). Narra a entrada em Lisboa de nave inglesa que partiu a 29-02, com padres trinitários (P. José de Paiva, P. Simão de Brito) para resgate dos escravos. A bordo 73 pessoas, entre os resgatados 5 padres da Companhia de Jesus, 6 padres seculares, 2 mulheres, três rapazes, etc. nascidos na ilha de S. Miguel. Foram levados processionalmente para a Igreja de S. Paulo e por três dias os trinitários deram-lhes alimentos (ANL 90, ff. 274-279). Outras notícias recolhi como o impressionante resultado de uma redenção: em junho de 1754 os trinitários regressaram de Argel, com o resgate de 227 escravos (ANL 109, f. 250 – carta do Cardeal Tempi, núncio em Lisboa, para cardeal Valenti 03-06-1754).

Repara-se neste paradoxo: ao mesmo tempo que a Coroa portuguesa participava no tráfico de escravos africanos, aplicava o dinheiro sujo na libertação dos portugueses detidos pelos muçulmanos! Como se não fossem seres humanos com igual dignidade! Que caminho não fazer ainda para lavar as mentes e limpar os corações para uma fraternidade universal. Contudo há sempre profetas, como o bispo do Pará Miguel de Bulhões e Sousa. Este nota como a “impiedade e injustiça com a qual são tratados os indígenas pelos habitantes das Índias ocidentais e meridionais, os quais esquecidos até das leis de humanidade, não só maltratam os ditos indígenas com injúrias atrozes, mas chegam a privá-los da liberdade, reduzindo-os injustamente à rigorosa condição de escravidão”. Sente como isso perturba o trabalho evangelizador (ANL 113, ff. 28-32 – 07-06-1755). Uma lei de D. José, de junho de 1755, restitui aos índios a liberdade de pessoas e bens.