Das coisas do riso e do lamento

Ocorre em 21 de novembro deste ano o 400.º aniversário da morte de Francisco Rodrigues Lobo (1574-1621), que foi em dos mais importantes polígrafos do seu tempo (poeta, dramaturgo, autor de diálogos didáticos), ao gosto do estilo da época, na transição entre o período clássico e a início do barroco na escrita literária.

Por M. Correia Fernandes

Lembra-se que nasceu ainda no tempo de Camões (1525-1580) é contemporâneo de duas figuras máximas do “Siglo de Oro” da literatura espanhola (da qual também foi cultor), como Lope de Vega (1562-1635) e Luis de Góngora (1561-1627). Mais novo que estes, escutou certamente o seu exemplo, uma vez que nasceu nos tempos da instauração em Portugal do reinado de Filipe II, em 1580. Natural de Leiria, acabou por falecer no naufrágio de numa viagem entre Lisboa e Santarém, em 21 de novembro de 1621. Teria uns 45 anos.

Talvez seja uma figura pouco amada entre as letras portuguesas, mas nem por isso menos importante. O seu estro poético-pastoril de inspiração clássica foi-se personalizando num conjunto de títulos de criação pessoal (destacam-se aas novelas Primavera, Pastor Peregrino e Desenganado, onde a narrativa de ambiente pastoril é comentada por composições poéticas), que culminam na obra que escreveu totalmente em prosa, concluída em 1619, chamada Corte na Aldeia. O próprio nome sugere a relação clássica entre a cidade e o campo e entre o universo nobiliárquico e a vida campestre (à qual sempre os nobres se ligaram, por aproveitamento das propriedades de que usufruíam e dos benefícios destas. A sua cidade natal de Leiria prepara um conjunto de eventos para recordar o seu centenário.

Sobretudo importa salientar a inserção nesta obra do universo dos nobres das novas atividades da vida política e cultural de então, o que se marca pela escolha das personagens: construída em diálogos (género literário em voga no seu tempo), ocorre  em casa de um fidalgo, mas apresenta: um letrado, doutor na sua profissão, um estudante bom engenho, com o sugestivo nome de Píndaro, um velho não muito rico que servira os nobres, mas “cuja murmuração ficava entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante”, talvez o inverso do que ouvimos hoje. Na obra podemos discernir quatro conjuntos de temas: 1) Temas do relacionamento na fidalguia (visitas, cartas, diálogos, conversação, liberdade e cortesia); 2) Temas de orientação política e moral (o poder, a riqueza, a cobiça); 3) Temas de comunicação e pedagogia (formas de falar bem, usos da linguagem, o valor da escola); 4) Temas da organização social (os hábitos da corte, a milícia). É especialmente interessante que o último diálogo incida sobre  a criação das Escolas…

Nesta crónica não temos intenção de analisar todo o conteúdo da obra. Apenas lembrar o título de alguns diálogos e analisar por contraponto a relação entre o que naquele tempo se propunha na boa criação e o que hoje se usa na profusão da linguagem mediática.

Da atualidade desses títulos orientadores lembro aos oradores e comunicadores os da “prática e disposição das palavras” (tantas vezes esquecida na profusão de palavreado que inunda a comunicação radiofónica e televisiva de hoje), “Da maneira de contar histórias na conversação” e “dos movimentos e decoro no praticar”, em que se inscrevem os preceitos que a seguir lembro. Recordo que “praticar” na linguagem de então pelo autor usada traduz tanto as formas de se apresentar como as de se exprimir, na adequada escolha das palavras e dos gestos.

Registemos pois o “vícios” que o “senhor Doutor” adverte e denuncia:

“O primeiro é escutar-se um homem a si próprio quando fala, por se contentar do que diz” (Ainda bem que não se refere ao mesmo vício na mulher, porque o teria que exponenciar);

“O segundo é repetir o que tem dito, com os olhos nos ouvintes, para que lho gabem” ( Na linguagem dos deputados e líderes partidários de hoje deveria dizer: elevar progressivamente  a voz no final das frases para que as aplaudam);

“O terceiro, deter-se tanto nas palavras como que as vai pensando, e compondo para as dizer” (Este menos frequente, porque nas linguagens de hoje são tantas as palavras que cobrem o pensar).

“O quarto, ir-se arrimando as bordões, para que lhe acudam entanto as palavras”. (Não  teria certamente conhecimento das fórmulas dos nossos comentadores atuais, políticos e desportivos, que sobre qualquer assunto sempre começam por “aquilo que é”);

“O quinto, ir à mão ao que quer responder, para querer falar tudo” (Certamente terá imaginado as nossas entrevistadoras que sempre cortam a palavra aos entrevistados(as), impedindo a lógica dos discurso, para parecerem que sabem mais do que eles(as), alterando o sentido da exposição e complicando a fluidez das ideias);

“O sexto, bracejar muito e dar grandes risadas dos seus próprios ditos” (Não terá tido conhecimento doa alguns apresentadores de concursos que a cada coisa que dizem dão uma gargalhada, dizem ok, e olham para a plateia para supor que gostou);

“O sétimo, borrifar as palavras com a humidade da boca, por falar com veemência”.

Acrescenta o autor que os três primeiros nascem do amor próprio, “que os gregos chamam filáucia”, e os seguintes “ou da ignorância, ou do descostume e falta de doutrina cortesã”.

Este último, dado que o problema da doutrina cortesã não se coloca nos dias que correm, passa a evidenciar-se a ignorância, ou o caráter pretensioso da linguagem que querem usar e do estatuto proeminente de que desfrutam, ou do descostume, que traduz os maus hábitos adquiridos ou imitados. Cabe bem a lembrança de que “quem se contenta a si contenta um grande néscio”, o que traduz bem a profusão de contentamentos com que nos deparamos.

Três dos remédios que aponta são especialmente relevantes os seguintes, de que todos deveríamos tirar algum proveito: Falar vulgarmente com propriedade; Fugir da prolixidade; Não confundir as razões com a brevidade.

Outras menções nos são úteis: “da boa linguagem a principal parte é a clareza” (atualmente busca-se a profusão das palavras, para se fazer supor o conhecimento); “o segundo descuido é do que fala ou alega latins entre pessoas que o não conhecem” (eis um retrato de modernos falantes, em que os “latins” são substituídos pelo, inglês em alarde de suposto saber).

Estas coisas do riso transformadas em lamento ensinam-nos que mudam as circunstâncias históricas e sociais, mudam-se os meios da transmissão, mas permanecem as vicissitudes do humano. E que hoje, com mais abundância de linguagem, menos se atende ao seu cuidado.