
As palavras de Jesus proclamadas no 29.º Domingo do tempo comum, em que a partir do evangelho de Marcos se lembrou a mensagem aos discípulos “Quem entre vós quiser ser o maior será o servo de todos”.
Por M. Correia Fernandes
Tal mensagem costuma ter uma pertinente interpretação espiritual, religiosa e ascética. Raramente se lhe dá uma interpretação social ou política. Mas essa interpretação impõe-se, particularmente à luz da encíclica “Laudato Sì” que dedica referências ao “amor civil e político” (n. 228 e sg.), à “justiça intergeracional” ou propõe sugestões sobre o lugar da política (n. 196).
Curiosamente já Jesus Cristo olhava essa dimensão, nomeadamente na análise que supõem as suas palavras das circunstâncias daquele tempo, vivido sob o domínio do Império Romano, ao qual a sociedade do seu tempo estava sujeita. Não é apenas a relevância dada à celebrada cena do tributo a César, o célebre e repetido “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, mas a referência pouco perceptível neste contexto em que os discípulos discutem a vontade de assumirem preponderância, em geralmente não se repara no contexto das palavras “entre vós quem quiser ser o primeiro será o servo de todos”: “Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder”.
É pois num contexto de poder e do seu exercício que é colocada a orientação aos discípulos da sua forma de estar e de agir como discípulos: entre vós não deve ser assim: “quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos”.
Ora esta norma contém uma aproximação à vida social, cultural e política dos tempos de hoje, com tanto maior vigor quanto ocorre em tempo de implantação das novas autarquias no nosso tecido organizativo: este apelo ao sentido do serviço constitui o âmago de tantas mensagens que encontramos nas propostas partidárias (embora não o seja nas suas práticas): é esta capacidade de estar ao serviço do bem comum, que o exercício do poder implica, tantas vezes afirma e quase sempre esquece. Quantas mensagens eleitorais são animosas e quão cedo se obliteram!
Todo este universo pode lembrar e ser comentado por algumas afirmações do P. António Vieira (1608-1697), tais como estas: “A verdadeira política é a Lei de Deus” (quantos pensam que as melhores leis humanas são as que traduzem ao menos o espírito dos essenciais mandamentos?); “Dos grandes e poderosos salvam-se muito poucos”.
Mas haveria que recordar outras afirmações suas, tão inesperadas quanto lúcidas: “Quem quer ser menos do que pode é sempre poderoso: sempre pode menos do que quer e sempre sobeja poder”. Este pode ser retrato da ambição pelo poder.
Mais relevante é esta: “Quando Deus nos manda o que quer não deixa de nos dar o que pode”. Dois incisos: Deus manda-nos o que quer, mas dá-nos aquilo que pode. Então não pode dar tudo o que queremos, nem tudo o que quer? Esse é o drama humano: não nos pode dar sempre o que queremos e por isso não tem o poder de suplantar a vontade da pessoa humana, e a nossa liberdade.
E lembre-se também esta: “A um fidalgo pobre, dê-se-lhe um governo… para que vá desempobrecer à custa dos que governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico”. (Sermão do Bom Ladrão).
Eis retratos sociais que nascem do passado e se projetam no futuro. Razão tinha a palavra de Jesus, palavra de oculta sabedoria humana, dita aos discípulos que humanamente queriam merecer distinção: “os grandes exercem o seu poder”. Quantos o dignificam pelo exercício do dever, como fizeram os discípulos e por isso o seu destino imediato foi o martírio e o seu destino futuro foi glorificação e louvor, naquele tempo em que se desfazem as ambições do tempo! No presente porém, esperemos o simples e despretensioso exercício do serviço do bem comum.