Para entender a moral hoje

Muitas pessoas ficam perplexas com o que se passa com a moral nos dias de hoje. Tomemos o exemplo das reivindicações de género, com os movimentos de defesa dos animais, as acções em favor do clima ou as reacções às notícias sobre abusos de crianças, seja na Igreja, seja noutros contextos.

Por Jorge Teixeira da Cunha

Há movimentos em favor da realização de valores morais, como sejam a luta contra o racismo, ou movimentos de purificação do passado colonial, como a discussão da escravatura, com a correspondente destruição dos monumentos, que desencadeiam uma violência em tudo contraditória com o propósito originário. Como fazer alguma luz sobre assuntos destes, tendo em conta o uso da racionalidade, se possível uma racionalidade iluminada pela fé cristã? É justo dizer que muitos destes movimentos contêm elementos interessantes e revelam a vaga nostalgia de incremento da moralidade e de busca de justiça. Mas qual a razão que os torna ineficazes e contraditórios?

Uma primeira razão da complexidade é que estes movimentos provêm de um estrato confuso da nossa personalidade. São reacções de escândalo, gritos invertebrados. Por isso, a sua eficácia de melhoramento do mundo é quase nula. Esta dimensão de nós é superficial e o seu dinamismo dorme um sono ligeiro que qualquer rastilho pode incendiar. Daqui provêm as moções de ira e de inveja que parasitam continuamente a nossa alma. Podemos talvez dizer que a construção do nosso “ego” pós-moderno se tem deslocado para esta região indomesticada de nós e somos comandados por ela. A cultura de massas que passa nos meios de comunicação global tem dado um grande contributo para a ampliação desta construção um tanto insana. Em vez de viver somos vividos por este mundo de representação anónima e superficial. Por isso, gritamos, destruímos, em vez de parar para nos deixarmos instalar na realidade.

Uma segunda razão que explica a complexidade e a impotência diante do aperfeiçoamento moral é a queda num objectivismo valorativo. Isso parece contraditório, pois provém de um “ego” desorbitado. O objectivismo é um caminho de avaliação moral que vê realizados nos lugares, nos tempos, nas coisas em geral os valores morais. É um pensamento um tanto primitivo que vê o bem ou o mal nos objectos que, tocados ou venerados, desencadeiam a perdição ou a salvação. Este caminho leva aos conhecidos mecanismos sacrificiais da queima dos livros, dos amuletos, ou até das pessoas. O caminho moral de certas reivindicações de hoje não anda longe disto: se derrubarmos a estátua extirpamos o mal da escravatura, se proibirmos isto ou aquilo, tornamo-nos automaticamente bons, moralmente falando. É justo dizer que este tipo de cultura é identificável tanto nos meios mais laicizados como também em meios crentes. Este tipo de objectivismo anda sempre de mão dada com o voluntarismo e com o fanatismo, de todos os quadrantes. A tendência para a expressividade cada vez mais repetitiva é um sinal disso.

Em terceiro lugar, podemos perguntar: então como podemos pensar a moral neste contexto? A nossa fé iluminada pela racionalidade leva-nos noutro sentido. Podemos aproveitar a boa vontade que revelam diversos destes movimentos para os canalizar para um verdadeiro caminho de moralização. Esse caminho será sempre o de uma maior sintonia com a realidade. Ora, segundo o caminho a que Jesus nos iniciou, a realidade moral é um crescimento de uma subjectividade habitada pelo divino. O divino vem ao ser humano pela iniciação, pela deposição do “ego”, e não pela sua ampliação mediante o saber aumentado. Por isso, a sintonia com o valor moral vem do silêncio e não do ruído, vem da escuta e não simplesmente da expressividade. O que dá poder de agir ao sujeito é a sua abertura ao infinito e não a sua afirmação desorbitada. Para crescer moralmente é necessário recuar até ao ponto em que o ser humano é dado a si mesmo, a esse lugar de origem de onde emerge, reabilitado pela enxertia em Cristo, simbolizada no baptismo. Essa é a subjectividade verdadeira, a virtude, a lucidez moral de que precisamos hoje.