
Faleceu a 4 de outubro de 2021 o poeta e escritor Fernando Echevarría (1929-2021). Um dos seus leitores e admiradores mais próximos, conforme textos que publicou neste semanário, é o Professor, que foi Diretor da Faculdade de Teologia vice-Presidente do Centro Regional do Porto da Universidade Católica, Arnaldo de Pinho, de quem registamos esta reflexão, a um tempo testemunho e análise do universo da sua poesia.
“Em toda a ciência – portanto finalmente em metafísica – trata-se de demonstrar. Demonstrar consiste em fundar a aparência para a conhecer certamente, a conduzir ao fundamento para a conduzir à certeza. Mas em fenomenologia quer dizer, ao menos em intenção, na tentativa para pensar sobre um modo não metafísico – trata-se de mostrar. Mostrar implica deixar a aparência aparecer de tal maneira que ela realize a sua plena aparição, a fim de a receber exactamente como ela se dá”.
Jean Luc Marion, Étant donné, Paris, PUF, 1997, 13.
Jean Luc Marion não era um desconhecido para Fernando Echevarría, como os autores que floresceram em França, a partir dos anos 70, na área da Fenomenologia. Mas a sua quase obsessão por uma espécie de epifania do real que a simples enumeração dos seus títulos demonstra, vem de muito mais longe e talvez de mais fundo.
Dos títulos de suas obras – algo estranhos para um poeta – baste-nos lembrar: Introdução à Filosofia, Porto, 1981: Fenomenologia (1984); Geórgicas (1998); Epifanias (2006), todos eles a indicar o caminho da manifestação, da aparição, da revelação, do espanto, da epifania.
Das raízes deste voltar sempre ao poema como epifania do ser, porque o poema como dizia Sophia “é uma arte do Ser”, está uma longínqua influência de Odo Casel (1886-1941) doutor em linguística clássica em Bona e também em Teologia, monge beneditino em Maria Laach, que estudou o mistério do culto cristão e a influência dos “mistérios pagãos” neste culto.
Por via dessa influência longínqua e dada a sua assimilação dos conceitos fundamentais da Fenomenologia, toda a poesia de Fernando Echevarría é uma espécie de liturgia da terra e a sua atitude perante o real uma espécie de Gelassenheit (deixar-se ir, soltar-se, abandonar-se), tema que Heidegger tratou de forma tão cativante.
Foi na sua casa da Cantareira, entre o rio e o mar da Foz, que o Poeta viveu a sua experiência poética e mística. Como escreveu um dia:
A Cantareira é, sobretudo, um modo
de estar a ver. De estar,
com toda a ausência, a encarar o estrondo
e, por trás dele, a sua luz cabal.
E, por trás dessa luz há ainda um ponto
– será de fuga? – que, em todo o caso, dá
para a invisível ascensão a um topo,
aberto, sempre para mais por trás.
Da cantareira vê-se o mundo todo,
Aquele, sobretudo, que, eficaz,
Abre o fulgor exposto
De quanto funda. E funda ver. E mais.
Escrevendo desde a Cantareira, sem incursões nos salões lisboetas, o percurso de sua obra é muito mais moderno do que possa parecer. E é moderno justamente naquele sentido, aberto por Wittgenstein, segundo o qual para lá dos limites da linguagem/mundo está o âmbito privilegiado do indizível, do silêncio e do mistério. E do que se trata então na grande arte é de não deixar de salvaguardar a fronteira inviolável do indizível, do místico…
Homem de uma fé profunda, alimentada pela liturgia, sobretudo pelos salmos, pela Eucaristia e pela leitura das grandes fontes cristãs – sobretudo Santo Agostinho- os místicos do século de ouro espanhol, os clássicos latinos e os grandes clássicos europeus, a par da música de Bach e do Gregoriano, nunca lhe interessou a pequena “vida eclesiástica”, como aos vencidos do Catolicismo.
Por isso,
Era viático o olhar. Ir vendo
estava a despedir-se a cada instante.
Conquistava, contudo, ao mesmo tempo,
Mais algum horizonte de passagem
E um maior espaço de silencio.
(Epifanias)
Arnaldo de Pinho
ND – Fernando Echevarría notabilizou-se pela aliança entre a poesia e o pensamento, bem como a espiritualidade. Por isso lhe chamaram poeta-filósofo. Muito ligado a atividades da Universidade Católica as sua exéquias celebraram-se na igreja de S. João da Foz, onde residia, indo depois a sepultar em Grijó.
Embora a sua origem venha do norte de Espanha, escreveu sempre em português, apenas ocasionalmente em castelhano e francês (residiu também em França). Foi poeta muito premiado, destacando-se o Grande Prémio de Poesia APE/CTT (1991, Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia (1982, 1999), Prémio de Poesia Luís Miguel Nava (1998), Prémio D. Dinis (2007), Grande Prémio Sophia de Mello Breyner Andresen (2007), Prémio das Correntes de Escritas (2015).
Lembra-se que foi contemplado pela Comissão Episcopal da Cultura com o Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes, no ano de 2005. A Biblioteca Almeida Garrett promoveu-lhe uma homenagem nos seus 90 anos
Das suas últimas obras refiram-se Epifanias (2006), Obra Inacabada (2006), Lugar de Estudo (2009), Antologia (2010), Categorias e Outras Paisagens (2013) e Obra Inacabada (2 vols, 2016).