
Há não muito tempo, residiam cerca de duzentos utentes no Centro de Apoio a Deficientes profundos João Paulo II, da União das Misericórdias Portuguesas, em Fátima. O Diretor da instituição era tutor legal de cento e dezassete dessas pessoas: era ele quem os tinha de representar em tudo porque a família… desapareceu. Mesmo tendo possibilidades de o fazer. Isto é: só bem menos de metade das respetivas famílias é que “queriam saber” desses seres humanos carenciados. A enorme maioria estava pura e simplesmente abandonada pelos pais, irmãos e outros familiares.
É inacreditável! Primeiro, porque julgávamos inquebráveis os laços de sangue. Depois, porque, cruzando esta informação com outras de que vamos tomando conhecimento no dia-a-dia, damo-nos conta de que este dado funciona como termómetro social. E a conclusão só pode ser uma: abandona-se mais facilmente um familiar, particularmente se frágil, do que um animal de estimação. Aliás, parece-me que a lei é bem mais dura para com quem abandona o cão ou o gato do que para quem se descarta dos seus.
Isto não abona muito sobre o timbre de qualidade dos laços familiares e do humanismo social. A conjugação de um modelo educativo familiar, que dá tudo e não exige nada, com o individualismo típico da cultura atual gera paradigmas mentais em que só o hedonismo, o “carpe diem”, o disfrute da vida sem compromisso, modelam a mente e a personalidade. Resultado: o outro, mesmo que seja o pai ou a mãe, o irmão ou o familiar direto, só é objeto de solicitude enquanto dá algo, gera proveito. Se não der nada, abandona-se como desprezível.
Nesta linha, é compreensível o desabafo de uma senhora, relativamente nova, cujo marido faleceu prematuramente. Queixava-se da solidão. Perguntei se tinha filhos. Sim, tem três e cinco netos. Mas disparou o que me deixou aturdido: “Era como se os não tivesse. Só me telefonam ou vão a casa quando precisam de dinheiro. Então, é melhor que me deixem em paz”.
Temos de nos questionar sobre o modelo educativo. Não tanto o sistémico escolar quanto o familiar. E interrogarmo-nos se um paradigma que dá tudo e não exige nada não criará seres mimados, semelhantes a átomos à volta de cujo núcleo tem de gravitar uma infinidade de eletrões.
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