
A encíclica “Laborem exercens” foi publicada a 14 de Setembro de 1981, pelo então Papa João Paulo II.
Por Jorge Teixeira da Cunha
A sua publicação foi retardada alguns meses, devido ao atentado de que foi vítima Sua Santidade, pois a ideia era publicá-la no “mês do trabalho”, a 15 de Maio, como as suas antecessoras, desde 1891. Passam, por isso, quarenta anos sobre a última encíclica do Magistério social, especificamente sobre o trabalho humano. Daí para cá, não houve mais nenhum grande texto sobre a questão. Nos dias que correm, bem necessitamos de uma nova reflexão orientadora sobre esta matéria.
A propósito convém lembrar, como se lembrarão ainda algumas pessoas, que o próprio Papa fez um excelente resumo da Laborem exercens na Avenida dos Aliados, no Porto, quase um ano depois, quando visitou a Cidade. O tema do trabalho e da militância foi escolhido para a alocução papal, dada a vitalidade histórica do apostolado social e da militância católica da Diocese do Porto. Com que orgulho o ouvimos e o aplaudimos nessa jornada memorável de Maio de 1982! Muito tempo depois, o Papa Wojtyla ainda se lembrava perfeitamente dessa calorosa hospitalidade portuense.
Esta encíclica sobre o trabalho é talvez o texto mais típico de todos os que aquele Papa escreveu, mantendo a sua mentalidade de homem da Europa de Leste que tinha sofrido as consequências do regime comunista, no que toca ao tratamento do trabalho humano como uma mercadoria e, por conseguinte, ao desrespeito pelo ser humano trabalhador. A preocupação principal do texto é mesmo essa de ligar o ser humano trabalhador e o seu trabalho, situando de forma subsidiária a instituição e as leis que balizam a actividade laboral. Ficou famosa a expressão segundo a qual o trabalho é “acção da pessoa (actus personae)” e não somente realização objectiva de uma tarefa de produção ou de serviço.
Este princípio fundamental continua válido, ou melhor, tornou-se muito mais actual, passado este quase meio século. Se naquele tempo era necessário salvar o ser humano do peso da instituição estatal e da estrutura económica, hoje é necessário defender o ser humano no contexto da evolução tecnológica. De facto, a tecnologia veio desarticular as instituições que estruturam o trabalho associado e as leis que as regulamentam. Os indivíduos têm sido cada vez mais deixados à mercê de um poderoso “dador de trabalho directo” que não tem rosto. Por outro lado, a máquina, o robot, que executa as tarefas sem o recurso da mão humana veio colocar-nos diante de desafios novos, antropológicos e éticos.
A tecnologia tem um carácter muito ambíguo. Há o aspecto bom, uma vez que o ser humano é libertado da dureza do trabalho manual, seja na agricultura, seja na indústria ou na construção civil. Porém, a separação, que se acentua, entre o trabalho como acção do sujeito e o trabalho como movimento objectivo, cria um problema antropológico de enorme importância. Se é verdade que será sempre o ser humano a produzir a máquina, a mantê-la em movimento, acontecerá uma debandada geral dos seres humanos do banco do trabalho que vamos ter de integrar no sentido da nossa habitação responsável do mundo. Nos próximos decénios, muitos dos que trabalham na agricultura, na indústria, nos transportes serão dispensados do seu posto de trabalho. Como ficará o mundo? É um grande enigma. Nem ser humano não pode viver sem trabalhar, nem o valor das coisas pode ser mantido sem o trabalho como acto subjectivo.
Há por isso muitas tarefas para o futuro do trabalho. A primeira é a conciliação entre o ser humano e o seu trabalho; a segunda é a questão do valor económico, numa civilização da máquina; o terceiro é questão da justiça, como forma de assegurar a subsistência de todos, quando muitos ficarem excluídos do grande banco do trabalho. Vai ser necessária uma grande criatividade e uma intensa militância. Por isso, necessitamos, talvez como nunca na história, da criatividade da fé cristã para nos iluminar. Uma nova encíclica sobre o trabalho seria muito bem-vinda.