O sociólogo e pensador francês Edgar Morin completou 100 anos em 8 de julho de 2021. Um homem centenário merece homenagens antes de o ser.
Por M. Correia Fernandes
Foi o que aconteceu entre nós ao menos em duas circunstâncias de reconhecimento: a Universidade Lusófona do Porto atribui-lhe o Doutoramento “Honoris Causa” em 19 de novembro de 2019 (com a participação do Conservatório de Música do Porto), possuindo também o mesmo reconhecimento em várias Universidades do Brasil; por sua vez a Unesco (organismo das Nações Unidas para a Ciência e Cultura) prestou-lhe também homenagem em sessão realizada no dia em que completou 100 anos, na qual com notável vitalidade afirmava, a partir da pergunta que lhe foi feita na sessão de homenagem e que recordava a o seu combate a favor dos valores éticos: “O indivíduo produz a sociedade e a sociedade passa a controlar o indivíduo. O indivíduo encontra-se no interior da sociedade, mas a sociedade com a sua cultura e a sua linguagem está no interior do indivíduo. O indivíduo está no interior da espécie, mas a espécie, através do ADN que está em todas as células, está presente no indivíduo… Todo o conhecimento está sujeito ao erro, porque todas as traduções e reconstruções estão sujeitas ao erro, começando pela nossa percepção, e até as nossas ideias e teorias estão sujeitas ao erro”.
O Instituo Piaget promoveu igualmente uma conferência sob a inspiração de E. Morin sob o tema “Centenário Edgar Morin: Cinema, Educação e Transdisciplinaridade”, realizada por via digital.
Poderemos recorrer a inspiradoras citações suas, como estas: “Todo o desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer a espécie humana”; “compreender, não só aos outros como a si mesmo, implica a necessidade de se auto-examinar, de analisar a autojustificação, pois o mundo está cada vez mais devastado pela incompreensão, que é o cancro do relacionamento entre seres humanos”; “A mundialização, a industrialização atinge a todos, por esses motivos compartilhamos dos mesmos problemas e medos”; “A pobreza permite autonomia; a miséria priva-nos dos direitos”; “A humanidade deve tomar consciência da incerteza do futuro e de seu destino comum”; “Reforma de pensamento significa reforma de educação” (Recolhidos de “O Pensador”).
Dimensão humanista
Em julho de 2019 o Papa Francisco recebeu Edgar Morin, dois anos antes de o filósofo, sociólogo e pensador completar o centenário de vida. Mostrou-se especialmente atento à dimensão englobante do pensamento moderno e do seu enquadramento científico e tecnológico. Francisco salientou a ação do pedagogo social como forma de colaborar na construção de uma sociedade mais justa e mais humanizada, o relacionamento criativo entre as dinâmicas do progresso científico e tecnológico com a consciência dos valores éticos que importa inserir na sociedade.
São evidentes os pontos de contacto entre as reflexões de Morin e as propostas da encíclica “Laudato Sì” (apelando a uma ação política enformada pelos valores éticos e uma orientação do progresso científico para o serviço da pessoa e da sociedade, por exemplo nestas palavras: “A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os objectos de uso doméstico até aos grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para o âmbito da beleza” (n. 102). Lamenta porém o esquecimento da tecnologia imperante pelo esquecimento da pessoa humana, na sua realizada psíquica e espiritual: “o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência” (n.105).
As reflexões de Morin sobre a “crise do conhecimento” (em que a abundância da informação se sobrepõe ou substitui a reflexão e em que a quantidade impede a compreensão) estão bem próximas da reflecção da Laudato Sì:
O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a economia actual e a tecnologia resolverão todos os problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens não académicas, que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado.
O que devemos lamentar é que a consciência destes dados não conduza à procura e aceitação dos seus remédios: aliança entre a humanidade e o ambiente, nova sensibilidade ecológica e um espírito generoso, abertura a uma educação ambiental humanizada, criar e ordenar itinerários pedagógicos com uma ética ecológica, crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão, para criar uma «cidadania ecológica», busca de uma transformação pessoal, com uma educação na responsabilidade ambiental que possa incentivar comportamentos positivos que conduzam a restituir a profundar o sentimento da nossa dignidade, conduzir a uma maior profundidade existencial, que permite experimentar que vale a pena a nossa passagem por este mundo.
É também aqui que o Papa apela: “Compete à política e às várias associações um esforço de formação das consciências da população. Naturalmente compete também à Igreja. Todas as comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar nesta educação”.
É aqui também que assinala que “A grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, constitui uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a humanidade”. (ver n. 202 a 227).
Neste tempo de ambiente eleitoral, mesmo que apenas autárquico (e digo “apenas” não por desvalorização mas pela sua inclusão em todo o universo nacional), em que a maioria das mensagens estão imbuídas de propósitos positivos (melhores cidades, melhores espaços, melhores serviços, mais inclusão e solidariedade social, propostas de ação), adquire especial sentido a atenção a este tratado de reconstrução planetária que é a encíclica “Laudato Sì”, um tratado de humanismo integral.
Perdoem-me este um convite à sua releitura, em torno da vida de um homem centenário.