Faleceu Ernesto Campos

Foi colaborador de Voz Portucalense durante muitos anos e publicamos aqui o seu último artigo de opinião.  Um texto com o título “Livros e leituras”. Será sempre recordado pelo seu exemplo e dedicação.

Às oito horas de dia 14 de setembro, Festa da Exaltação da Santa Cruz, recebi da voz embargada de sua filha a notícia dolorosa do falecimento de Ernesto Campos.

Curiosamente este seu último artigo, enviado em 10 de setembro, já paginado, lembra realidades tão próximas como a Feira do Livro, o tempo de férias e o pensamento do filósofo lituano-francês Emanuel Levinas, na sua relação entre a palavra bíblica e o pensamento judaico-cristão, bem como a aspiração à verdade, o drama do totalitarismo e a força dinamizadora da filosofia e a dignidade essencial da pessoa humana.

No fundo os temas pelos quais se bateu ao longo da sua longa e sábia colaboração na Voz Portucalense, que nunca abandonou, mesmo nos momentos dolorosos da morte de sua esposa. Os seus escritos fundavam-se sempre em palavras inspiradoras e constituíam eles próprios motivos de inspiração para o leitor.

Perdemos um de nós, que permanecerá sempre pela sua dedicação e seu exemplo.

Ernesto Marques Campos tinha cumprido 86 anos de idade. Formado em Filosofia, foi professor efetivo do Liceu de Vila Nova de Gaia, formador, colaborador de edições escolares e colaborador pedagógico do Ministério da Educação. Era pai de cinco filhos, avô de oito netos e já com um bisneto.

O seu funeral realiza-se nesta quarta feira, 15 setembro (dia de Nossa Senhora das Dores), às 15 horas, na igreja paroquial de Santo Ovídio, a cuja paróquia pertencia. O Senhor o abençoará e acolherá.

CF

 

Livros e Leituras

“O Deus do versículo (…) pode ser para o filósofo a medida do Espírito”

Emmanuel Lévinas (1906-1995)

Mais do que negócio de livreiros, a Feira do Livro é uma espécie de preceito a cumprir anualmente em busca de novas e atuais sugestões de reflexão sobre o vento que passa sem se deixar arrastar por ele. Ler é não estar sozinho a cogitar tristezas e estar acima do agora para poder julgar o “estar aqui”.

Por Ernesto Campos

Outro tempo forte de leitura reflexiva são as férias. Tempo próprio para revisitar leituras fundadoras. Um amigo mandou-me um velho livro que ambos lêramos em meados do século passado. Folheio-o, agora, em páginas “digitalizadas, formatadas e fotocopiadas” com o mesmo prazer com que o releio. Foi uma sugestão motivadora: porque não rever as velhas fontes e reler, por exemplo, a República de Platão ou a Cidade de Deus de Sto. Agostinho ou a Divina Comédia de Dante ou a Bíblia de sempre?

Emmanuel Lévinas é um filósofo lituano francês, professor de filosofia na Universidade de Poitiers e, depois na Sorbonne, judeu que era, não deixou de refletir “sobre o hitlerismo”. Nessas reflexões “até se explicita a tese de que a cultura ocidental, cuja  nobre aspiração à verdade não se assegurava suficientemente em relação à tirania.” Se conhecer é tomar posse, um tal domínio, pode, contra a sua vontade traduzir-se em violência, tirania e guerra. O homem, feito de “medo e amor” acaba por aceitar a tirania, amando a própria consciência discordante.

Certo é que a república platónica desenvolve a cidade ideal e o conceito de liberdade na versão que os gregos tinham dela, privilégio dos sábios e dos fortes. Veio, depois, o conceito de liberdade cristão-ocidental, aquisitivo de autonomia pessoal e intencional inerente à própria dignidade da pessoa humana. Mas que não exlcui, que ao longo dos séculos se repetisse a expressão da tirania que Lévinas não deixou de conhecer – “o totalitarismo novecentista” – a que alude como “ética do temor”.

A quem lhe perguntara: “Como é que na sua obra se harmonizam esses dois modos de pensamento, o bíblico e o filosófico?” replicou dizendo que têm de se harmonizar. Fala do Deus do versículo, isto é, do Deus referido na Bíblia, não o tomando como substituto da prova na especulação filosófica, mas como “a medida do espírito” quando esta porventura lhe falte. Quer dizer, segundo as palavras de Lévinas: “o sentimento religioso, tal como o recebi, consistia mais no respeito pelos livros, a Bíblia e os seus comentadores tradicionais, do que em determinadas crenças (…) o sentimento de que a Bíblia é o Livro dos Livros, em que se dizem as coisas primeiras, as que se deviam dizer para que a vida humana tenha um sentido, é a extraordinária presença das suas personagens que, para mim, significam a transcendência.”.

As leituras de hoje são o espelho reflexivo do aqui e agora, do espírito do tempo. As velhas fontes apontam o sentido incontornavelmente humano com o qual ou sem o qual o hoje se ganha ou se perde, entendendo-o ou não. Esta quase devoção às fontes não terá a última palavra, mas pertence-lhes a primeira que é a mãe de todas as outras.